01/08/2013

revista Ensino Superior nº 10 (julho-setembro)

A Crise da Universidade

Análise de Simon Schwartzman publicada em 1980 permanece atual em seu mapeamento dos grandes dilemas do sistema de ensino superior brasileiro

Por Simon Schwartzman
Simon Schwartzman é pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro. Foi, entre 1994 e 1998, presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)  e, entre 1999 e 2002, diretor para o Brasil do American Institutes for Research.  Estudou sociologia, ciência política e administração pública na Universidade Federal de Minas Gerais (1961); tem um mestrado em sociologia pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) , Santiago do Chile (1963); e Ph.D. em ciência política pela Universidade da Califórnia, Berkeley  (1973).  Foi professor da UFMG, tendo sido afastado pelo golpe militar de 1964 e reintegrado em 2000, quando se aposentou. Vive no Rio de Janeiro desde 1969, tendo trabalhado como professor e pesquisador na Fundação Getúlio Vargas, na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep, 1976-1980) e, até 1988, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Foi professor de ciência política da USP (1990-1994) e da UFMG. No exterior, foi, entre outros, pesquisador visitante do Woodrow Wilson International Center for Scholars (1978), na Universidade Columbia (1986), na School of Education e Center for Studies on Higher Education, Universidade da Califórnia, Berkeley (1985), Stanford (2001), École Pratique des Autes Études (1982-3), Oxford (1994 e 2003) e Harvard (2004). Foi presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, do Comitê de Pesquisa em Sociologia da Ciência da International Sociological Association e é membro da Academia Brasileira de Ciências.
 
 
A Ensino Superior Unicamp publica nesta edição, com autorização do autor, o capítulo 5 do livro Ciência, Universidade e Ideologia: A Política do Conhecimento (Rio de Janeiro, Zahar), publicado em 1980[1]. Entre as muitas qualidades desta análise já clássica, como a coragem em apontar o dedo para questões sensíveis, o texto de Schwartzman chama a atenção pela atualidade, a despeito de ter sido publicado há mais de 30 anos. "Cada um dos problemas da Universidade, tomado de forma isolada, é passível de um certo grau de correção e melhoria, desde que exista uma aplicação adequada de recursos, vontade política, inteligência e imaginação", escreve Schwartzman. "Quando vistos em conjunto, no entanto, eles levantam uma questão bem mais profunda: Não estaria havendo algo de fundamentalmente errado em tudo isso? Não seria o caso de tentar examinar o sistema de educação universitária como um todo e, quem sabe, rever seus próprios objetivos mais gerais? Na realidade, esse reexame já vem sendo feito, porém não produziu uma visão alternativa para os antigos ideais. Mas tem sido suficiente para enfraquecê-los, a ponto de tornar todo o sistema universitário uma espécie de criatura sem objetivo e consequentemente, sem alma."
 
 
A preocupação com a educação não nos deve fazer esquecer que ela pode pouco. Os problemas da pobreza e da ignorância dependem de soluções econômicas, políticas e administrativas que não podem ser adiadas sob o pretexto de que, com a educação, se resolveriam naturalmente Os ideais da universidade
Vinte anos atrás [anos 60], a Universidade brasileira tinha problemas, mas os ideais da Universidade pareciam claros: bastava olhar para os países ricos e desenvolvidos, ver como suas universidades acolhiam massas cada vez maiores de estudantes, formavam profissionais competentes para todas as áreas de conhecimento, eram centros de pesquisa e de cultura, e foros de debates e novas ideias. O ensino universitário universal parecia ser a meta óbvia a ser atingida, ainda que dela estivéssemos tão distantes.
 
Os problemas de nosso sistema de ensino superior, em contraste com esse ideal, pareciam igualmente óbvios e fáceis de diagnosticar, se não de resolver. Havia poucos recursos; professores catedráticos que não se renovavam impediam a melhoria da qualidade do ensino; exames vestibulares seletivos controlavam a entrada dos cursos, elitizando as escolas; alunos e jovens professores tinham pouca ou nenhuma voz ativa nos assuntos universitários; as universidades dividiam-se em escolas isoladas, departamentos estanques que não permitiam o aproveitamento racional de seus recursos; o ensino, em muitas áreas, era dogmático, repetitivo, desligado da realidade, pouco prático. A Universidade precisava urgentemente ser aberta, ampliada, flexibilizada, enriquecida, valorizada, democratizada – precisava, enfim, de uma Reforma.
 
Não importa que muitos desses objetivos fossem contraditórios entre si, ou dificilmente realizáveis na prática, a prazo previsível; o significativo, do ponto de vista dos ideais da Universidade, é que parecia haver consenso a respeito dos grandes objetivos a alcançar.
 
É importante, por outro lado, não deixar a educação para depois. Os sistemas educacionais podem ser um fator adicional de custos, desigualdade e alienação social, assim como têm um potencial pouco conhecido para gerar novos valores, novas perspectivas, novas soluções Um dos principais objetivos, que sempre acompanhou a expansão de educação em todo o mundo, é a função democratizadora da Universidade. Na época moderna, a conquista do direito à educação passou a ser considerada como parte da ampliação do próprio conceito de cidadania, junto com o direito ao voto e a condições mínimas de assistência social, salário e condições adequadas de trabalho. No início, vinculada somente à educação básica ou primária, essa noção foi gradativamente se estendendo a níveis educacionais cada vez mais altos, até atingir a educação superior. De acordo com essa concepção, o sistema educacional, e o sistema universitário em particular, teria a grande função de dar a todos uma oportunidade igual de participação da sociedade, ao mesmo tempo em que selecionaria os mais qualificados para o exercício das diversas funções profissionais. Esta última função é bem expressa por Darcy Ribeiro, quando diz que "apenas o sistema educacional e, especialmente, a Universidade, cuja função é adestrar quadros, poderá conferir legitimidade ao exercício do poder nas sociedades futuras, cujos gestores serão obrigatoriamente diplomados em cursos universitários".[2]
 
Sempre se soube, naturalmente, que o ensino superior no Brasil era extremamente seletivo, disponível quase exclusivamente para os filhos de famílias ricas que pudessem pagar uma boa educação secundária e tivessem o ócio suficiente para o estudo e a aprendizagem de qualidade. No entanto, essa seletividade era sempre vista como uma deformação possível de ser corrigida. Na medida em que o ensino primário e secundário se expandisse como ensino universal, a Universidade também estaria aberta para todos, estabelecendo um sistema de igualdade de oportunidades onde as únicas diferenças a vigorar seriam aquelas do mérito pessoal.
 
Além dos ideais de democratização e seleção dos mais aptos, a Universidade cumpriria uma terceira função, a de racionalização da sociedade. A educação universitária universal permitiria eliminar as diferenças entre o culto e o inculto, entre o saber científico e o saber pré-científico. Ela proporcionaria, enfim, a chegada do terceiro estado de evolução positivista da sociedade, o da ciência. Ainda no dizer de Darcy Ribeiro: "A promessa de superar a dicotomia entre a cultura erudita e a cultura vulgar, substituindo-a por uma cultura de base científica", que teria de ser difundida, necessariamente, por "um novo sistema formal de educação".[3]
 
A separação entre educação e escolarização é um item essencial da nova agenda. A maneira de realizar isso é multiplicar os meios de educação e informação na sociedade, sem vinculá-los necessariamente à obtenção de certificados ou credenciais A Universidade deveria ainda realizar uma série de outros objetivos igualmente nobres. Como centro de cultura e ciência, ela deveria proporcionar, na área das ciências humanas, um pensamento crítico que pudesse dar direção e sentido ao desenvolvimento da sociedade através do tempo; e, na área das ciências naturais, proporcionar os conhecimentos técnicos que permitissem participar com plenitude do mundo tecnologizado que nos espera no futuro próximo. Além disso, a Universidade deveria proporcionar a cada um uma profissão bem remunerada, socialmente prestigiada, e que pudesse utilizar com plenitude o potencial de todos. Na versão moderna dos economistas, a Universidade seria a instituição que dotaria cada um de um capital humano que produziria cada vez mais riquezas, e iria, gradativamente, acabando com as desigualdades e aumentando o desenvolvimento do país.
 
Na última década [anos 70], o número de matrículas nas universidades e escolas superiores no Brasil quase decuplicou, a cátedra foi abolida, institutos e departamentos acabaram com as escolas isoladas nas universidades, um amplo sistema de pós-graduação foi implantado. Nem por isso parece que a Universidade tenha menos problemas. O número de candidatos que não conseguem entrar nas escolas superiores é maior, proporcionalmente, do que antes; a qualidade média dos alunos caiu assustadoramente; houve uma grande proliferação de cursos de má qualidade, diplomando profissionais de formação cada vez mais tênue para um mercado de trabalho cada vez mais saturado; a pós-graduação é cara, restritiva, e muitas vezes de qualidade duvidosa; a criação de sistemas de vestibular unificado não igualou efetivamente as oportunidades, ao permitir que os alunos melhor formados, oriundos de famílias mais ricas e educados nas melhores escolas secundárias, privadas, escolham as carreiras de maior prestigio das universidades públicas – deixando as escolas pagas, de má qualidade e nas áreas profissionais menos valorizadas, para os alunos de origem social mais humilde. E não está claro que as ciências sociais e naturais geradas pelos novos institutos de pesquisa tenham a qualidade e a pertinência que seriam necessários.
 
Cada um desses problemas, tomado de forma isolada, é passível de um certo grau de correção e melhoria, desde que exista uma aplicação adequada de recursos, vontade política, inteligência e imaginação. Quando vistos em conjunto, no entanto, eles levantam uma questão bem mais profunda: Não estaria havendo algo de fundamentalmente errado em tudo isso? Será que todos esses problemas podem realmente ser enfrentados de forma razoável em um país como o Brasil? Não seria o caso de tentar examinar o sistema de educação universitária como um todo e, quem sabe, rever seus próprios objetivos mais gerais? Na realidade, esse reexame já vem sendo feito por estudantes, professores, pesquisadores, especialistas em educação, pela sociedade como um todo. Esse reexame não produziu, até hoje, uma visão alternativa para os antigos ideais. Mas tem sido suficiente para enfraquecê-los, a ponto de tornar todo o sistema universitário uma espécie de criatura sem objetivo e consequentemente, sem alma. Essa falta de alma, objetivos, motivação, impede, por sua vez, que surja a vontade política que possa enfrentar os problemas crescentes da Universidade. É nesse sentido que a crise é, hoje, muito mais profunda do que 20 anos atrás.
 
Na medida em que a escola educa, ela produz um bem válido em si mesmo, como a saúde. O sistema escolar hierárquico e seriado, no entanto, produz um bem relativo semelhante à medalha olímpica, definido por sua escassez relativa, que é o do nível, e não o da qualidade, educacional A crise
As explosões estudantis de 1968 nos países ocidentais mais desenvolvidos parecem ter posto a nu, pela primeira vez, a crise do ideal da Universidade. Em Paris, Berkeley, Berlim, Boston, os estudantes saem às ruas, exigem reformas em suas universidades, fazem demandas políticas, opinam sobre contratação ou demissão de professores, demandam certos tipos de curso e se recusam a seguir outros. A politização dos estudantes, tão conhecida na América Latina, choca professores, pais, educadores e autoridades governamentais, acostumados a ver em suas escolas superiores os lugares tranquilos e privilegiados onde, sem alarido, se processavam os rituais de formação e seleção meritocrática das futuras elites. Mais chocante, no entanto, e difícil de absorver foi a própria recusa dos estudantes em aceitar, daí por diante em números crescentes, os princípios reguladores da meritocracia universitária. Se a politização, em si, poderia ser vista como um avanço na consciência e responsabilidade social dos estudantes – acentuada, nos Estados Unidos, pela guerra do Vietnã –, a recusa à própria lógica de funcionamento do sistema universitário parecia colocar em questão toda a estrutura em que ele se assentava.
 
O grande princípio a ser colocado em dúvida foi o da autoridade do professor em relação ao aluno. Em um sistema de mérito, o professor tem a autoridade que lhe dá seus anos de estudo, e os processos de competição e seleção por que passou até o privilégio de ensinar. E essa autoridade que lhe permite escolher e avaliar seus pares, selecionar, aprovar ou reprovar estudantes, e decidir o que estes devem estudar. Ao julgar professores por critérios ideológicos, exigir acesso à Universidade por critérios étnicos, culturais ou econômicos, ao se recusar a aceitar a relação de deferência e respeito que as diferenças de idade e experiência pareciam implicar, todo o edifício da Universidade meritocrática é ameaçado de ruir.
 
Em sua análise da crise francesa, Michel Crozier acredita que essa contestação do sistema de autoridade e hierarquia não se limitou à Universidade meritocrática, mas foi muito mais geral. "Em todos os setores, em todas as formas de atividade e em todos os tipos de grupo, as relações humanas habituais são postas em questão. Certamente, as atividades de ordem intelectual são as mais atingidas. Mas nenhuma forma de atividade humana, desde as salas de aula até os escritórios administrativos, passando pelas oficinas, cooperativas e conventos, foi poupada por essa grande vaga coletiva de expressão. Barreiras e restrições cederam, na realidade buscou-se, com determinação sistemática, eliminar todas as barreiras e todas as restrições à comunicação. No mesmo movimento, toda a autoridade se viu automaticamente contestada, e as relações face a face surgiam naturalmente dessa contestação, como se da própria ruptura decorresse necessariamente a dessacralização da autoridade e o engajamento no mundo da palavra."[4]
 
As explicações para esses eventos tão extraordinários foram muitas, e muitas vezes contraditórias. Vistos na perspectiva de dez anos, os movimentos estudantis de 1968 não parecem ter sido nem o limiar de uma nova revolução, como muitos acreditaram, nem a simples explosão de uma insatisfação passageira, detonada pelas frustrações da guerra nos Estados Unidos, e espalhada depois por efeito de imitação para a Europa.
 
Há uma tendência a avaliar as pessoas pela posição relativa que ocupam em uma escala de conhecimentos, e não pelo conteúdo do que sabem ou podem fazer Essencialmente, a crise de 1968 colocou em tela a contradição crescente entre as características internas dos sistemas universitários, e dos ideais que aparentemente os inspiravam, e a realidade social e econômica mais abrangente. Em um nível psicológico muito básico, as exigências de estudo, dedicação e subordinação pessoal e intelectual entravam em contradição clara com os desejos de participação social imediata e irrestrita de uma juventude criada no conforto e na segurança do pós-guerra. Na França, onde os quadros dirigentes não passavam pela universidade, e sim pelas Grandes Écoles, tornava-se cada vez mais óbvio que a dedicação e o sacrifício que se exigiam dos estudantes não teriam necessariamente compensação na forma de papéis sociais a serem desempenhados mais tarde, e onde os conhecimentos e os modelos de comportamento aprendidos nesse processo pudessem ser efetivamente utilizados. (As Grandes Écoles são estabelecimentos de ensino de elite, onde são recrutados os quadros dirigentes da França – a École Politechnique, École Normale, École Nationale d'Administration e outras. Essas escolas não pertencem ao sistema universitário francês, que proporciona uma educação de qualidade geralmente inferior para uma população muito maior).[5] Isso era ainda mais agudo na área das ciências sociais, onde as promessas de um conhecimento científico da sociedade atraíam grandes massas de jovens motivados a uma estrutura de ensino hierarquizada e rígida, liderada por intelectuais cujo prestígio tendia a ser proporcional ao esoterismo de sua produção acadêmica. A mesma contradição ocorria na Alemanha, onde a tradição de um sistema universitário de padrões extremamente rígidos e exigentes era ainda mantida, mas já não proporcionava aos que passavam pelos seus bancos uma posição social e econômica correspondente.[6] Na Europa, como nos Estados Unidos, o trabalho operário qualificado alcançava pouco a pouco a remuneração dos bacharéis e doutores, e havia outras formas mais imediatas e diretas de obter reconhecimento e liderança social na política, nos esportes, por qualquer meio que atraísse a atenção dos meios de comunicação de massas sem a necessidade de passar pelos longos rituais e procedimentos da vida universitária.
 
A crise de 1968 coincide, finalmente, com a passagem do baby boom pelo sistema universitário. São as crianças nascidas logo no pós-guerra que chegam à idade adulta, e trazem consigo toda uma ampliação dos sistemas de ensino e uma abertura de oportunidade de trabalho que seus irmãos mais jovens já não encontrariam. Após 1968, os empregos se tornam mais difíceis, os salários mais baixos, a competição por lugares de trabalho nas universidades mais acirrada. Ao contrário do que se presumia até então, começa a ficar claro para muitos que a educação universitária pode ser pouco rendosa, intelectualmente frustrante, pessoalmente extenuante. Na Universidade norte-americana surge a figura até então desconhecida dos drop-outs, enquanto o número de inscritos anualmente nas universidades começa a decair. Era o fim de uma era de otimismo, expansão contínua das oportunidades educacionais e crenças no futuro inevitável da meritocracia.
 
O principal efeito da difusão do ensino superior e da educação não tem sido a eliminação das diferenças de conhecimento e informação entre os diversos grupos e setores sociais, mas, ao contrário, um aumento contínuo da diferenciação e especialização O Brasil também teve sua crise estudantil em 1968, mas, ao contrário da Europa e Estados Unidos, ela não surpreendeu ninguém. As universidades e escolas superiores na América Latina nunca chegaram a se constituir em sistemas meritocráticos tão bem caracterizados quanto os dos países mais adiantados, e têm uma longa tradição de politização estudantil. Existe um traço comum entre a experiência universitária latino-americana e a dos países desenvolvidos, que é a da crescente falta de correspondência entre o que é ensinado e exigido dentro da Universidade e as realidades da vida do trabalho. Mas há uma vantagem de renda e prestígio social que a Universidade proporciona. O estudante latino-americano pode não estudar, mas a figura do drop-out não ocorre. Como veremos adiante, o prestígio e a renda proporcionados pelo nível universitário na América Latina têm menos a ver com o conteúdo específico dos ensinamentos obtidos nas universidades do que com a força que os diversos grupos profissionais, principalmente nas carreiras mais clássicas, têm em manter seus níveis de renda e assegurar monopólios de trabalho para as suas respectivas corporações de médicos, engenheiros, advogados, odontólogos etc. Essa força, por sua vez, é mantida graças ao número relativamente pequeno de profissionais nas diversas áreas, e à posição socialmente privilegiada de suas famílias de origem, que lhes dão o amparo econômico e político necessários.
 
São essas vantagens econômicas e sociais que fazem da carreira universitária um objetivo tão universalmente desejado. É sabido que a grande maioria dos estudantes brasileiros em nível primário e secundário aspira à Universidade, e isso independentemente de suas possibilidades reais de ingresso através dos exames vestibulares, ou de seus recursos para financiar uma vida de estudos.[7] A miragem dos cursos universitários faz fracassarem os cursos secundários de tipo profissionalizante (ainda que existam, certamente, outras causas), e lança milhares de estudantes em uma maratona de estudos onde todo o conteúdo substantivo da educação é abandonado em função das exigências ritualizadas dos vestibulares.
 
Tradicionalmente, a vida política nas universidades latino-americanas tem sido uma forma de antecipação e preparação para lideranças políticas nos respectivos países. É nas escolas de direito que se exercitam os tribunos que mais tarde formarão as lideranças dos partidos, são nas associações estudantis e nas diversas formas de co-gobierno que, desde a Reforma Universitária de Córdoba de 1916, os estudantes se preparam para o exercício do poder.[8] A diferença entre essa experiência tradicional de participação política e as mais recentes, que começam no Brasil no final da década de 1950 e culminam nas grandes manifestações de 1968, é que o número de estudantes agora é maior, a origem social é muito mais diversificada, e as posições de liderança estão, em grande parte, ocupadas. É por isso que a politização estudantil assume um tom revolucionário e intransigente que até então não era tão presente. Além disso, existe um sentido de urgência: a vida estudantil dura só uns poucos anos, e as promessas para depois de formado, que atraíram os estudantes para as universidades, parecem miragens cada vez mais inatingíveis para a grande maioria. Ao contrário de muitos estudantes europeus e norte-americanos, que descobriram que a carreira universitária era, para eles, um falso privilégio, o estudante latino-americano reage porque os direitos derivados de seu privilégio, que lhes parecem óbvios, não são reconhecidos e correspondidos.
 
O sistema universitário hoje no Brasil combina o pior de dois mundos: por um lado, um sistema altamente controlado, burocratizado e enrijecido; por outro, um predomínio de instituições de ensino privado, que primam pela baixa qualidade e custos crescentes para os estudantes É essa posição privilegiada dos universitários latino-americanos que faz com que os problemas do sistema de ensino superior sejam percebidos em nossos países como meramente técnicos, administrativos, financeiros ou mesmo políticos, mas raramente como problemas relativos à própria concepção e objetivos da educação e da universidade. No entanto, a experiência hoje vivida pelos países mais desenvolvidos nos faz temer que estejamos buscando um objetivo inatingível, que todo o esforço de aperfeiçoamento do sistema universitário nos esteja conduzindo, na melhor das hipóteses, aos problemas das universidades nos países mais maduros. Uma atitude possível em relação a isso é considerar que esses problemas são um luxo que ainda não temos condições de enfrentar – uma postura semelhante a quem declarara, em outro contexto, que "a poluição é nossa". A outra é tratar de prever os rumos que as coisas poderão tomar, e tratar de rever os objetivos e alternativas para o futuro, utilizando-se, para isso, da experiência de quem já enfrenta, hoje, estes problemas. Isso é tão mais importante porque, com toda a probabilidade, o desenvolvimento do sistema universitário em um país como o Brasil não será similar ao já ocorrido nos países desenvolvidos; assim como nas demais áreas, os países subdesenvolvidos de hoje não são como os países desenvolvidos de ontem, mas uma realidade própria, que funde várias épocas históricas e etapas distintas de desenvolvimento em uma realidade inédita.
 
Vale a pena, assim, aprofundarmo-nos no diagnóstico da crise.
 
O prestígio e a renda proporcionados pelo nível universitário na América Latina têm menos a ver com o conteúdo específico dos ensinamentos obtidos nas universidades do que com a força que os diversos grupos profissionais têm em manter seus níveis de renda e assegurar monopólios de trabalh A crise do ideal de democratização
A expansão dos sistemas educacionais tem sido historicamente acompanhada de uma grande abertura de oportunidades no mercado de trabalho, através da criação de novos empregos, novas formas produtivas, novas fronteiras de atividade e mobilidade social. Nas novas oportunidades de trabalho e autorrealização que surgiram com a Revolução Industrial e sua expansão, a posse de conhecimentos obtidos de forma organizada nas escolas era uma via óbvia de entrada.[9] As relações de causa e efeito entre educação e mobilidade social são, no entanto, bastante problemáticas, e objeto de duas escolas clássicas e contrapostas de pensamento. A primeira afirma que o processo de transformação social se dá essencialmente na esfera do sistema produtivo, e que os sistemas educacionais se adaptam e aperfeiçoam para atender às demandas da economia, não tendo, consequentemente, força causal própria. A segunda é oposta, e atribui à educação uma capacidade de gerar habilidades e conhecimentos que são, por sua vez, os verdadeiros geradores de riqueza. A educação passa a se constituir, assim, em um elemento-chave para qualquer processo de desenvolvimento econômico-social em sua versão econômica, um investimento em "capital humano" passível, em princípio, da mensuração e avaliação necessárias para sua utilização racional e maximizadora de benefícios.[10]
 
Surgem daí, basicamente, três maneiras de pensar a função social da educação. A primeira trata a escola e a Universidade como um problema meramente técnico, ou super-estrutural", que tenderia a se ajustar com maior ou menor dificuldade à realidade dos processos econômicos mais profundos: para esse grupo, o problema da educação é, essencialmente, secundário. A segunda, ao contrário, vê na educação o grande instrumento de democratização e modernização social; e a terceira acredita que o ensino é um investimento econômico privilegiado. A primeira e a terceira compartem uma visão economicista e funcional da realidade social, apesar de se originarem de escolas de pensamento econômico aparentemente antípodas; é a segunda que pretende recuperar a dimensão social e política mais profunda da educação em todos os seu níveis, principalmente em relação a seus ideais de equidade e justiça social.
 
As ilusões de décadas passadas sobre os poderes igualitários da educação foram abaladas pela impaciência dos estudantes nas crises de 1968 e, nos anos seguintes, por uma grande proliferação de estudos e pesquisas que, em muitos países, começaram a esclarecer melhor as coisas.[11] Ficou claro, em primeiro lugar, que existe uma grande relação, em todas as partes, entre renda e educação, mas também uma relação entre renda da família de origem e educação, seja esta medida em termos de anos de escolaridade ou, simplesmente, de aproveitamento escolar ou escores em testes de diversos tipos. Isso significa que, em termos individuais, obter educação pode ser um canal efetivo de mobilidade social; mas que, em termos coletivos, a chance de que alguém consiga educação em nível adequado depende, essencialmente, das condições de renda de sua família. Em outras palavras, a educação, basicamente, reproduz um sistema anterior de desigualdade e estratificação social.
 
Essa característica geral dos sistemas educacionais significa que, na realidade, todo o ideal da educação como mecanismo de democratização e mobilidade social era uma falácia?
 
Houve quem fizesse essa generalização, enquanto outros estudos trataram de medir qual a autonomia causal de variáveis especificamente educacionais sobre o logro intelectual, econômico e social das pessoas. Em outras palavras, mesmo aceitando que a educação reproduz os sistemas de estratificação social em suas linhas mais gerais, não seria possível que ela tivesse uma certa capacidade de influência democratizante e de abertura à participação social, que pudesse ser determinada e explorada?
 
Seria impossível tratar de resumir os resultados da imensa literatura que surgiu sobre esse tema. Parece ter ficado claro, através do tempo, que variáveis educacionais têm sua importância: alunos cuja origem social normalmente os levaria a aproveitar pouco da escola se saem melhor se colocados em escolas mais bem equipadas, dotadas de orientação pedagógica adequada, e em contato com colegas de origem social mais alta. Existem, no entanto, sérios limites no papel que a escola pode desempenhar.
 
O grande limite é que as escolas tendem a se estratificar de acordo com os setores da sociedade a que servem. Em geral, as classes altas têm condições de proporcionar escolas melhores a seus filhos, e fazê-los conviver em ambientes normalmente mais intelectualizados e letrados do que as classes menos favorecidas. Assim, os efeitos potencialmente equalizadores da educação não se dão. Um indicador simples desse fato, para o Brasil, é o montante de gastos das famílias com a educação de seus filhos. No Rio de Janeiro em 1975, por exemplo, famílias com renda até 9 mil cruzeiros anuais (900 dólares) gastavam menos de 1% em média de seus recursos em educação, enquanto as de renda acima de 31.600 cruzeiros (3.160 dólares) gastavam mais de 4% para o mesmo fim. É claro que essa percentagem maior de um volume muito maior de recursos pode comprar melhor educação.[12]
 
É essa desigualdade de recursos que leva à busca de um sistema educacional gratuito, e essencialmente igualitário em seu conteúdo e sua pedagogia. Não era outro, na realidade, o grande objetivo do movimento da Escola Nova, de proporcionar a toda a população uma educação homogênea, de formação geral, e que desse a todos uma oportunidade igual de participação nos benefícios da sociedade.[13] O ideal de uma Universidade universal e pública para toda a população é simplesmente uma extensão do ideal escolanovista.
 
Na crise de 1968, em um nível psicológico muito básico, as exigências de estudo, dedicação e subordinação pessoal e intelectual entravam em contradição clara com os desejos de participação social imediata e irrestrita de uma juventude criada no conforto e na segurança do pós-guerra Aí surge, no entanto, uma série de outros limites à função equalizadora e modernizadora da educação. Os sistemas públicos de educação tendem a estabelecer padrões uniformes de ensino e avaliação do desempenho dos estudantes e esses padrões, dizem seus críticos, tendem a ser próprios da cultura dos setores mais privilegiados da sociedade. A competição igualitária e meritocrática do sistema de educação universal já seria, pois, de início, viciada. O estudante de família educada – e rica – já falaria em casa a língua na forma aprovada pela escola, teria o vocabulário considerado necessário, pensaria da forma aprovada. Estudantes de setores sociais marginalizados teriam de aprender uma nova forma de falar e pensar, quase uma nova língua e outra estrutura mental, e terminariam prejudicados. Na competição pelos melhores lugares – como já ocorre, hoje, nas universidades públicas brasileiras – ganhariam sempre os filhos das classes mais favorecidas. O sistema de educação pública, assim, novamente sancionaria o sistema de desigualdades sociais existentes, agora à custa do erário. A mesma crítica é estendida aos testes de inteligência e todos os demais instrumentos de avaliação de nível intelectual – seriam sempre enviesados em favor dos padrões culturais e modos de pensar das classes mais favorecidas, e por isso prejudicariam, sistematicamente, os de outra origem social.
 
Além disso, os sistemas universais e igualitários de educação devem ser, necessariamente, generalistas em seu conteúdo. Para que todos tenham a mesma oportunidade é necessário que todos tenham um núcleo comum de habilidades e conhecimentos; e esse núcleo não pode ser qualquer, mas deve ser aquele que maximize as oportunidades de acesso a posições sociais mais valorizadas. Dessa maneira, os sistemas de educação pública terminam por proporcionar uma educação geral, não especializada, que não habilita o estudante para o desempenho de uma profissão determinada. Isso ocorre no nível da educação primária e secundária, e no sistema do college norte-americano, com seus programas de liberal arts, até no nível universitário. Não é outro, na realidade, o sentido do ciclo básico que, de uma forma ou de outra, se tratou de implantar nos últimos anos no Brasil. Os efeitos desse tipo de educação são, novamente, regressivos do ponto de vista das oportunidades econômicas e sociais. A educação genérica é apropriada para os que a utilizam como forma de socialização cultural e acesso a posições sociais mais altas, mas não para os que necessitam, mais imediatamente, de habilidades profissionais com as quais possam comparecer ao mercado de trabalho. A promessa da educação genérica só se torna realidade para os poucos que se podem valer dela; para a grande maioria, ela se torna um ritual sem sentido totalmente afastado de sua realidade cotidiana, um ritual que deve ser seguido, no entanto, pelas promessas de grandes recompensas ao final do ordálio.
 
Na área da formação de uma reflexão crítica sobre a sociedade, a Universidade brasileira tem se saído muito bem. Mas há limitações sérias em relação ao alcance dessa crítica. Estudantes e professores universitários são, afinal, beneficiários dos ganhos proporcionados pelo sistema edu A crise da educação funcional
O grande modelo alternativo à educação igualitária e universal é o da educação funcional, que deveria preparar as pessoas para o desempenho de funções sociais específicas. O ensino "profissionalizante" tem, aparentemente, este sentido: visa educar as pessoas para atividades que elas possam, de fato, desempenhar, deixando de lado os conhecimentos mais supérfluos que não serão jamais utilizados pelos estudantes. No entanto, a própria resistência dos estudantes e suas famílias a esse tipo de ensino já chama atenção para sua principal dificuldade: aceitar um diploma profissional ao nível secundário pode significar o abandono dos ideais de sucesso econômico e social prometidos pela Universidade. Os sistemas educacionais que consagram escolas e cursos diferentes para categorias sociais e profissionais distintas abandonam, de fato, os ideais igualitários e emancipatórios da educação geral universal. O operário que manda seu filho à escola técnica industrial desiste, de antemão, de transformá-lo em "doutor"; o mesmo vale para a moça que opta por um curso de secretária.
 
A realidade do mundo do trabalho faz com que, muitas vezes, esses cursos sejam realmente buscados, e os grandes ideais, por inatingíveis, abandonados. Mas isso não se faz sem um sentido de derrota, sem um conformismo que atinge os próprios professores responsáveis por esse tipo de ensino, que têm esse trabalho menos por gosto do que por necessidade. As grandes empresas, as associações comerciais e industriais, os grandes setores da administração, por sua vez, não confiam no sistema de educação regular para formar as pessoas de que necessitam. Por isso, elas tratam de criar seus próprios sistemas de educação profissional, desde formas mais ou menos organizadas de treinamento no trabalho até sistemas mais complexos como o Sesi ou o Senai. Isso reforça ainda mais a falta de interesse do "ensino profissionalizante" que pretenda funcionar independentemente do mundo empresarial.
 
Os sistemas universais e igualitários de educação devem ser, necessariamente, generalistas em seu conteúdo. Mas a educação genérica não é apropriada para os que necessitam, mais imediatamente, de habilidades profissionais com as quais possam comparecer ao mercado de trabalho Essa maneira de tentar resolver os problemas da educação genérica é apresentada, muitas vezes, como uma busca de maiores vínculos entre a educação e a comunidade da qual vêm e para onde devem voltar os estudantes. A busca de uma vinculação mais íntima entre o sistema educativo e o meio que o circunda foi um dos temas centrais dos movimentos pela reforma universitária do final dos anos 1950 e início dos anos 1960 no Brasil. Buscava-se uma Universidade menos alienada, mais sintonizada com as necessidades e aspirações do meio mais imediato que a circundava. Esta era, também, uma das dimensões importantes do ideário educacional de Anísio Teixeira e do movimento escolanovista: a descentralização do ensino, sua manutenção e orientação pelas comunidades às quais as escolas pertencem, tal como ocorria nos Estados Unidos, fonte de inspiração deste como de outros movimentos de reforma.
 
Tanto quanto o ensino profissionalizante, a educação controlada e dirigida para as comunidades tem o grave defeito de consagrar e consolidar as desigualdades existentes. Nos Estados Unidos, uma das consequências principais dos movimentos pelos direitos civis das minorias foi a perda gradativa da autonomia das escolas, forçadas a uma abertura no recrutamento de seus alunos que vai muito além do que as comunidades brancas e mais ricas fariam de moto próprio. No Brasil, foi certamente o reconhecimento da crônica indigência econômica e cultural da maior parte da sociedade – a ponto de a expressão "comunidade" não ter, na realidade, muito sentido no país – que levou ao desenvolvimento de um sistema educacional tão hierarquizado, centralizado, padronizado e controlado, como o que criamos. As comunidades não mereciam confiança, nem tinham os recursos para educar a população do país; principalmente porque a educação que se buscava não era para agora, mas para o futuro, que ainda está por construir.
 
A centralização e burocratização do ensino no Brasil não decorre exclusivamente, pois, da tendência centralizadora do Estado, mas corresponde a uma preocupação genuína de evitar os males da desigualdade institucionalizada e consagrada. Mas essa solução também traria seus problemas.
 
O grande modelo alternativo à educação igualitária e universal é o da educação funcional, que deveria preparar as pessoas para o desempenho de funções sociais específicas A crise da qualidade
Os sistemas educacionais têm uma característica que torna o ideal democratizador e igualitário inatingível: é que eles são, pela sua própria constituição, criadores de diferenciação, desigualdade e estratificação. Além disso, possuem outra característica que, em conjunto com a primeira, torna o ideal funcionalista extremamente problemático: é sua capacidade de isolamento e diferenciação em relação aos demais sistemas sociais.
 
Existem certos bens sociais que são apreciados pelo benefício intrínseco que trazem; existem outros, no entanto, cujo valor reside em sua relativa escassez. Ter saúde é um bem do primeiro tipo; ser um campeão olímpico é um objetivo do segundo. No primeiro caso, é possível aspirar à democracia e ao igualitarismo: todos podem e devem, em principio, ter saúde. Só uns poucos, no entanto, podem ser campeões olímpicos, na medida em que as medalhas que alguns ganham são as medalhas que os demais não recebem. Essa distribuição profundamente antidemocrática das medalhas olímpicas não pode ser alterada através de melhor treinamento atlético da população: o único efeito disso seria acirrar a competição, e elevar as marcas dos recordes, sem, no entanto, melhorar a distribuição. Na realidade, na medida em que mais pessoas entram na competição, a tendência é piorar cada vez mais a distribuição desses bens.
 
Na medida em que a escola educa, ela produz um bem válido em si mesmo, como a saúde. O sistema escolar hierárquico e seriado, no entanto, produz um bem relativo semelhante à medalha olímpica, definido por sua escassez relativa, que é o do nível (e não o da qualidade) educacional. Em outras palavras, há uma tendência a avaliar as pessoas pela posição relativa que ocupam em uma escala de conhecimentos, e não pelo conteúdo do que sabem ou podem fazer. A hierarquização dos estudantes em séries, a ordenação dos alunos por notas, o ordenamento das escolas por prestígio, a aplicação de testes de inteligência e uma série de outros processos fazem parte desse lado da educação formal nas escolas. Na medida em que eles fossem meros recursos didáticos para a aferição do aproveitamento dos alunos, poderiam ser substituídos por sistema de avaliação diferenciados e qualitativos, onde os aspectos mais competitivos e ordenadores fossem eliminados. A substituição do sistema de notas por conceitos, por exemplo, foi uma tentativa nesse sentido. No entanto, não tardou que se estabelecessem equivalentes numéricos dos conceitos, que, de qualquer forma, sempre foram hierarquizados de "A" a "D". A persistência dos sistemas de ordenação dentro da escola mostra que seu objetivo está longe de ser exclusivamente didático e pedagógico.
 
De fato, os sistemas escolares, em sua pretensão de eliminar as desigualdades de origem social dos estudantes, terminam por criar um sistema próprio de estratificação social, baseado na capacidade que têm os estudantes de vencer os diversos testes e rituais de passagem que encontram pelo seu caminho. Os sistemas de educação igualitária e universal colocam todos os estudantes dentro de um sistema de ordenamento único para toda a sociedade, definido, essencialmente, pela escolaridade obtida. Já vimos que esse ordenamento reproduz, em grande parte, a estratificação social das famílias de origem dos estudantes, Podemos acrescentar agora que, em muitos casos, não só os efeitos de democratização social não ocorrem, como também novas e mais dolorosas desigualdades são introduzidas.
 
O ideal da educação funcional supõe que deveria haver uma correspondência entre as características de educação dadas pelo sistema de ensino e as atividades para as quais as pessoas se destinam. No entanto, essa correspondência muito frequentemente não existe. As razões para isso são várias.
 
Uma dessas razões já examinamos anteriormente: é a própria tendência dos sistemas de ensino a desenvolverem a educação geral, em nome da igualdade de oportunidades, e não a formação específica. Depois, existe um grande time lag entre o mundo da escola e o mundo do trabalho. Em sociedades em transformação, é praticamente impossível prever e proporcionar aos estudantes os conhecimentos que lhes serão necessários muitos anos mais tarde, quando tratarem de buscar uma atividade profissional. Se essa dificuldade ocorre do ponto de vista do conteúdo, ela é ainda mais séria do ponto de vista quantitativo: não há como prever adequadamente a demanda do mercado de trabalho para os diversos tipos de profissionais que se formarão dentro de quatro ou cinco anos nas universidades.
 
Mas a própria resistência dos estudantes e suas famílias ao ensino profissionalizante já chama atenção para sua principal dificuldade: aceitar um diploma profissional ao nível secundário pode significar o abandono dos ideais de sucesso econômico e social prometidos pela Universidade Seria de esperar que, apesar disso, houvesse um mecanismo de mercado que corrigisse, a médio prazo, o afastamento dos sistemas de ensino em relação ao mercado de trabalho. Isso não se dá, principalmente, pelo fato de que a manutenção do sistema educacional de um país só muito indiretamente depende do seu sistema produtivo. A educação pública é mantida com recursos fiscais, os educadores e administradores da educação se constituem em grupos de pressão importantes que zelam pela continuação de suas instituições e rotinas de trabalho, e a própria incapacidade do mercado em ir absorvendo as pessoas educadas faz com que elas terminem trabalhando no sistema educativo, que assim se infla e reforça cada vez mais como sistema isolado. Isso é ainda reforçado e alimentado pelo fato de que existe uma demanda contínua e crescente por educação superior, que parece não se arrefecer mesmo quando o nível das escolas cai, o custo da educação aumenta e as possibilidades de trabalho bem remunerado tendem a diminuir. Enquanto nos países mais desenvolvidos a expansão do sistema educacional parece ter acarretado maior competição por um número relativamente restrito de postos disponíveis, gerando assim maior emulação e melhoria de qualidade em um extremo do sistema universitário (e desânimo e perda de interesse no outro), isso parece não se dar no Brasil.
 
A explicação desse paradoxo só é possível quando nos damos conta de que o que está ocorrendo não é só a disputa acirrada por um número cada vez menor, em termos relativos, de empregos, mas uma progressiva ocupação de faixas cada vez maiores do mercado de trabalho por pessoas portadoras de diploma. O universitário brasileiro, em outras palavras, não compete por cima, pelo acesso aos melhores lugares, e sim por baixo, para deslocar os que têm menos educação, de posições que ocupavam. Esse deslocamento ocorre de diversas formas. A mais simples é a eventual preferência de um empregador por um candidato que porte um diploma superior, em relação a qualquer outro menos educado. As mais complexas consistem na monopolização progressiva de diversas áreas de atividades para universitários devidamente titulados. O modelo da corporação profissional, antes privativo das carreiras mais clássicas, como a medicina, a engenharia e o direito, passa a ser estendido para um grande número de novas profissões. Áreas do mercado de trabalho são reservadas para economistas, estatísticos, comunicadores sociais, psicólogos, administradores, e, quem sabe, sociólogos. Na administração pública, uma série de funções passam a ser privativas de profissionais de nível superior.
 
É claro que, na medida em que esse sistema cresce, os privilégios profissionais tendem a valer cada vez menos, até o ponto em que o valor do título profissional não mais compense. Mas existe um longo caminho a percorrer até chegarmos a esse ponto. Enquanto isso, o diploma universitário terá seu valor, mas um valor que independe do conteúdo dos estudos, já que a competição não é feita pelos melhores lugares, e sim na margem.
 
A educação, em si mesma, não é necessariamente um recurso produtivo, ainda que seja rentável para o indivíduo que a possua. Na situação brasileira, a obtenção de um nível educacional alto é uma garantia de consumo, de emprego em um mercado de trabalho privilegiado e protegido, de ingresso em uma corporação profissional capaz de, pelo menos, discriminar contra os menos educados. Enquanto o sentido da competitividade no sistema educacional não se alterar, enquanto ela não se transformar em competição por qualidade, a expansão do sistema educacional representará, predominantemente, um custo social, e não um investimento, apesar dos ganhos individuais que proporcione.
 
[...]
 
Em última análise, o que explica que o sistema universitário brasileiro possa aumentar tanto de tamanho, sem com isso aumentar a competitividade interna, é a própria estratificação social do país, que está relacionada com o grande número de pessoas que não conseguem educação alguma, ou ficam perdidas pelos caminhos da competição pela Universidade. Em um sistema como esse, a educação se resume em um ritual de passagem onde o processo e a aparência são mais importantes que os conteúdos do aprendido. Na medida em que a possibilidade de expansão desse sistema de monopólios profissionais se esgote, ou quando os salários médios de determinadas categorias começarem a descer demasiado, poderemos esperar uma reação. Haverá – na realidade já está havendo – pressões para elevar o nível dos cursos, restringir o número de vagas, fazer valer os critérios de qualidade. Ainda aqui, esses critérios serão definidos, internamente, pelas necessidades de competição dentro das profissões, e não tanto pelas demandas do mercado.
 
A formação profissional deveria ser dada de forma muito mais específica. Uma das formas de fazê-lo é estimular a que os diversos setores do mercado de trabalho formem seus profissionais. Seria possível imaginar, por exemplo, que a OAB criasse ou supervisionasse suas próprias escolas de direit A crise da universidade científica e crítica
A noção de que a Universidade deve normalmente abrigar a atividade científica, e que esta é fundamental para a melhoria e garantia do nível de ensino universitário, é um dos postulados que poucos ousam discutir, ainda que todos reconheçam as grandes dificuldades que existem para que isso seja feito. Uma visão histórica e comparada revelaria, no entanto, que é na realidade impossível, e talvez mesmo indesejável, tratar de reunir a pesquisa científica e a atividade de ensino em um sistema de educação superior como o nosso.
 
A vinculação do ensino superior com a pesquisa científica é uma criação do sistema universitário alemão do século XIX, que serviu de base, posteriormente, para a modernização do sistema universitário norte-americano. É uma história complexa que não poderia ser resumida aqui. No entanto, ela parece ter correspondido a algumas condições essenciais. Primeiro, à existência de um estrato social ilustrado que, nas limitações da Alemanha do início do século passado, jogou toda a sua aspiração de mobilidade social na constituição de um sistema universitário de qualidade. Segundo, foi a coincidência entre o desenvolvimento da química como atividade industrial importante e seu desenvolvimento como atividade científica e acadêmica que deu à pesquisa científica em geral grande prestígio e visibilidade fora dos meios acadêmicos; terceiro, a descentralização da sociedade germânica antes da reunificação, que permitiu a criação de centros universitários independentes e competitivos. No início do século XX, a atividade científica de ponta já não cabia no sistema universitário alemão, e começava a se deslocar para o Kaiser Wilhelm Gesellschaft, hoje Instituto Max Planck.[14]
 
Em vários outros países, a atividade científica nunca se localizou primordialmente nas universidades. Na França ela sempre ficou ligada a institutos independentes, até a criação do Centre National de la Recherche Scientifique[15]; na Rússia, e posteriormente na União Soviética, ela se localizou primordialmente na Academia de Ciências.[16] Os Estados Unidos adotariam o sistema alemão, a que acrescentariam uma dimensão importante, que foi a formação do cientista como profissional independente, nos cursos de doutoramento, que deixaram de ter, naquele país, o sentido único de credenciamento para a atividade universitária, que é a característica principal dos doutorados europeus.
 
Apesar da grande e significativa exceção da química alemã do século XIX, ou da medicina nas universidades escocesas também na mesma época, a regra geral parece ser a de uma constante dissociação entre a atividade de pesquisa científica e a formação superior para as profissões. Sistemas de ensino superior que conseguem diferenciar, com clareza, as funções de pesquisa e as funções de ensino profissional logram um certo grau de coexistência e fertilização mútua entre esses dois tipos de atividades; mas é um equilíbrio sempre problemático.
 
A educação de elite é uma função que nenhuma sociedade dispensa, e que deveria ser tratada explicitamente no Brasil. A forma para isso é a seleção de algumas instituições universitárias de alto nível, que possam diferenciar-se das demais e funcionar como centros nacionais de excelência A situação no Brasil é particularmente grave, nesse sentido, porque a inspiração original de nosso sistema de ensino superior são as escolas profissionais francesas, o chamado "modelo napoleônico", que consiste em uma série de estabelecimentos de ensino que têm a "faculdade", ou seja, a permissão, de outorgar títulos e qualificações profissionais. A função dessas faculdades é distribuir na sociedade certos privilégios, corporificados nos diplomas que emitem e que devem ser depois sancionados pelo Estado. Se acrescentarmos a isso o fato de que a tradição cultural brasileira, católica ou positivista, nunca chegou a incorporar os valores e as motivações da atividade científica; e que o desenvolvimento econômico do país, na periferia dos grandes centros industriais, nunca criou maior demanda por uma atividade tecnologicamente mais complexa, poderemos sentir a dificuldade de levar à frente, em nosso meio, o ideal do ensino-pesquisa. Em síntese, a atividade de pesquisa científica pode eventualmente se implantar e desenvolver em instituições excepcionais relativamente marginais ao sistema de ensino superior do país; mas nunca coube, e talvez nem deva caber, no centro do sistema de ensino superior, cujas funções efetivas são, e quase certamente continuarão sendo, profundamente distintas dos objetivos e necessidades do trabalho científico.
 
As dificuldades quanto à implantação da atividade científica têm a ver com outro objetivo atribuído à Universidade, que é o de integrar, racionalizar e cientificizar a sociedade. Esse é, na realidade, um ideal iluminista que tem pouco a ver com o mundo de hoje e com o que podemos prever do mundo de amanhã. O principal efeito da difusão do ensino superior e da educação não tem sido a eliminação das diferenças de conhecimento e informação entre os diversos grupos e setores sociais, mas, ao contrário, um aumento contínuo da diferenciação e especialização. A "aldeia global" das sociedades modernas só existe no que se refere ao consumo de informações relativamente simples e devidamente empacotadas para difusão pelos grandes meios de informação. Na esfera do conhecimento mais aprofundado, de fronteira, o que predomina é o desenvolvimento de comunidades de especialistas cada vez mais diferenciadas, que elaboram áreas de conhecimento e tecnologias cada vez mais esotéricas. A utopia de uma sociedade onde não existe diferenciação e especialização é, em última análise, uma nostalgia de um passado que talvez nunca tenha existido, a busca de um sistema social baseado em um ideal durkheimiano de solidarité mécanique que tem pouco a ver com a evolução previsível das sociedades modernas, capitalistas ou não. Essa diferenciação e complexidade crescentes significam, também, que não é possível submeter a diversidade do mundo moderno a um grande sistema de planejamento, racionalização e controle da atividade humana, sem cair no totalitarismo político e intelectual.
 
Finalmente, caberia examinar a crise da Universidade como fonte de formação de uma reflexão crítica sobre a sociedade. Essa é, sem dúvida, uma área em que a Universidade se tem desempenhado bastante bem, principalmente através de seus estudantes. Ao mesmo tempo, existem limitações sérias em relação ao alcance dessa crítica. Estudantes e professores universitários são, afinal, beneficiários dos ganhos proporcionados pelo sistema educacional a que pertencem; seria pouco razoável esperar, assim, que o sentido critico que eles tão frequentemente manifestam possa voltar-se com facilidade para alterar os próprios mecanismos de prestígio social e mobilidade que os gratificam. Uma revisão profunda do sistema universitário do país deveria contar, certamente, com a colaboração ativa dos diversos grupos que compõem nosso sistema de ensino superior; mas assim como as guerras são sérias demais para serem deixadas aos generais, a Universidade é importante demais para ser deixada, somente, a seus professores e alunos. É necessária uma nova agenda de objetivos e prioridades, e essa agenda deve interessar a todos.
 
Uma das maneiras de reduzir o aspecto discriminatório da formação de elites é ir criando uma pluralidade de oportunidades educacionais e profissionais tal que faça com que só os realmente mais bem dotados e orientados para a formação proporcionada pelos centros de excelência se interessem p Para uma nova agenda
A crise da Universidade não é, em síntese, uma crise circunstancial, um mero problema de falta de meios, mas uma crise mais profunda, de objetivos e de metas. Muitos dos antigos ideais cuja realização se pretendia através da Universidade continuam sendo importantes, mas devem ser buscados por outros meios. Alguns como, por exemplo, o da racionalização da sociedade e da homogeneização dos conhecimentos eram utopias equivocadas que cumpre abandonar. Finalmente, haveria que dar mais forças e relevância a alguns objetivos que a Universidade pode tentar alcançar, e que não têm tido até agora a necessária ênfase. É dessa revisão de perspectivas que deve surgir uma nova agenda para a Universidade em nosso meio. Não seria possível pretender fazer brotar essa agenda de um ensaio tão preliminar como este, mas alguns de seus itens podem começar a ser discutidos. Eis algumas sugestões.
 
Democratização e Cidadania
O ideal de dar às pessoas melhores oportunidades de participar na vida econômica, social e política de seu país é, em si mesmo, indiscutível. O que vimos, no entanto, é que a tentativa de buscar esse ideal pela difusão da escolarização seriada cada vez mais longa, incluindo a Universidade, leva na realidade à criação de um novo sistema de estratificação e desigualdade social. A separação entre educação e escolarização, uma das teses centrais das propostas revolucionárias de lvan lllich, parece ser realmente um item essencial da nova agenda.[17] A maneira de realizar isso é multiplicar, de todas as formas, os meios de educação e informação na sociedade, sem vinculá-los necessariamente à obtenção de certificados ou credenciais de nível secundário ou superior. O objetivo, a longo prazo, seria o de eliminar o prêmio que a sociedade paga à escolarização formal, de tal maneira que seja o conteúdo da educação, e não o título, o que importe.
 
Liberdade de ensino e experimentação
A liberdade de ensino e experimentação não é somente um princípio pedagógico importante mas, se levado a suas últimas consequências, pode ter uma influência decisiva sobre a função estratificadora e discriminatória da educação formal.
 
Com efeito, a criação de cursos não previstos dentro do ordenamento seriado, que estabeleçam seus próprios currículos, critérios de seleção e credenciamento, pode contribuir para pluralizar e diversificar as possibilidades de educação, e reduzir a importância das credenciais oficializadas. Isso já ocorre hoje no Brasil, em grande parte, no nível de pós-graduação, onde o credenciamento formal dos cursos ante o Conselho Federal de Educação perdeu grande parte de sua importância, substituído que foi pelo reconhecimento da qualidade dos melhores programas por outras agências. Essa situação de fato deveria ser tornada legal, e aberta, inclusive para outros níveis de ensino; o objetivo longínquo seria a própria eliminação da ideia de "nível" com sua conotação hierárquica, substituído pelo de qualidade e tipo.
 
Controle de qualidade e desburocratização
A liberalização do ensino traz sempre consigo o fantasma do abuso, da irresponsabilidade e da contrafação. Já vimos que, no Brasil, o prêmio que existe ainda hoje para a educação formal impede que se estabeleça uma competição salutar dentro do sistema educacional pela qualidade, mesmo com as oportunidades declinantes de trabalho e salários para os formados. A crença de que a desregulação do sistema de ensino pela eliminação dos reconhecimentos de curso, registro de diplomas, fixação de currículos mínimos etc. traria automaticamente uma melhoria de qualidade não parece, pois, ser realista. Por outro lado, são essas regulações que não só tiram a flexibilidade do sistema educacional, como criam e mantêm a hierarquização do ensino, que é uma das causas da busca tão grande da educação formal.
 
Um aspecto relacionado com esse é o do reconhecimento legal e credenciamento das profissões. Historicamente, as associações profissionais e a regulamentação dos direitos e deveres dos médicos, advogados e outros grupos de nível universitário são sobrevivências das antigas corporações medievais, que monopolizavam e regulavam determinadas esferas de atividade.[18] A organização corporativa das profissões é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela controla a qualidade da atividade profissional, estabelece padrões de competência, permite distinguir o profissional qualificado do incompetente e do charlatão. Por outro lado, protege o grupo profissional de inquisições de outros setores da sociedade, estabelece monopólios e garante situações de privilégio para seus membros.
 
Os problemas oriundos da organização corporativa das profissões se agravam quando elas passam a ter suas normas e princípios de funcionamento sancionados, regulados e controlados pelo Estado. O Estado corporativo chama a si a organização das profissões, e dessa forma tende a eximir as associações da responsabilidade pelo controle da qualidade e da excelência profissional, que é um de seus principais atributos. A definição de privilégios profissionais legais, reservas de mercado restritas a determinados grupos e setores, tende a agudizar ainda mais esse problema, que integra o quadro geral de um sistema de ensino hierarquizado, burocratizado e orientado para a busca de credenciais.
 
A ideia de que ensino e pesquisa científica devem estar sempre juntos não resiste a exame mais aprofundado, e deveria ser abandonada. A atividade de pesquisa e a formação dos futuros pesquisadores devem ser concentradas em alguns centros de alto nível A maneira de enfrentar esse problema não é aumentar ainda mais os sistemas de controle e padronização burocrática dos títulos e credenciais, e sim transferir progressivamente a função reguladora do âmbito do Estado para o âmbito das associações profissionais, com a eliminação do sistema de credenciamentos, reconhecimentos e privilégios profissionais. Idealmente, deve caber aos próprios médicos, por exemplo, definir os padrões mínimos de qualificação para o ingresso de profissionais em suas associações; grupos diferentes com mentalidades e filosofias diferentes poderiam organizar-se de forma separada, a partir de critérios próprios. Caberia ao público, em última análise, averiguar quais os diferentes médicos que existem, e buscá-los de acordo com sua preferência. O próprio Estado poderia eventualmente formar seus profissionais de saúde, com perfis adequados a seus serviços, que não têm por que ser idênticos aos demais. Isso levaria, sem dúvida, à desorganização da profissão, mas esta seria uma desorganização salutar, na medida em que poderia fazer emergir a qualidade e separar o joio do trigo, dentro do atual sistema de credenciamento padronizado e uniforme. O efeito em relação às "novas profissões" (comunicadores, estatísticos, administradores) seria ainda mais drástico, e mais obviamente salutar, já que, aqui, os aspectos de privilégio e monopólio no mercado de trabalho, garantidos pelo Estado, são praticamente os únicos a existir, uma vez que há pouco ou nenhum sistema de controle de qualidade e qualificação interna às profissões. O efeito da desregulação dessas novas profissões seria o de reduzir, de imediato, o atrativo que as respectivas credenciais oferecem, e permitir o surgimento de associações de grupos profissionais de qualidade.
 
Diferenciação das funções da universidade
É importante aceitar de uma vez por todas que as diversas funções que se atribuem mais especificamente à Universidade – formação profissional, formação e pesquisa científica, treinamento de elites, cultura geral – são muitas vezes incompatíveis e contraditórias, e deveriam ser tratadas de forma indiferenciada. A Universidade brasileira continua sendo, essencialmente, formadora de profissionais de ensino superior, em detrimento e frequentemente em contradição com as demais funções. Algumas formas possíveis de diferenciação são as seguintes:
 
a) Educação geral. A organização de nossas escolas superiores em faculdades profissionais oculta o fato de que muitas pessoas buscam nelas, simplesmente, uma continuação de sua educação geral, sem objetivo profissional específico. Grande parte do contingente feminino de classe média e alta nas sociedades não tem um objetivo profissional explícito, mas participam da Universidade como parte de um movimento geracional mais amplo. Por outra parte, o mercado de trabalho no Brasil ainda é, e possivelmente continuará a ser, receptivo a pessoas bem dotadas de recursos educacionais genéricos que manejem bem a língua, conheçam idiomas estrangeiros etc. Um programa avançado de cultura geral, de forma semelhante ao college norte-americano, poderia dar guarida a esse tipo de estudante, reduzindo, assim, a pressão sobre os cursos profissionais.
 
b) Educação profissional.[19] A formação profissional deveria ser dada de forma muito mais específica, atendendo às demandas que possam existir no mercado de trabalho, e não somente às demandas por vagas. Isso não pode ser feito de maneira simples, mas existem várias formas de aproximação desse objetivo. Uma delas é estimular a que os diversos setores do mercado de trabalho formem seus profissionais: os diversos setores do Estado, em primeiro lugar, mas também os industriais e as próprias associações profissionais. Seria possível imaginar, por exemplo, que a Ordem dos Advogados criasse ou supervisionasse suas próprias escolas de direito, enquanto o Ministério da Fazenda formasse seus economistas especializados. Isso não é uma novidade absoluta, como atestam os exemplos do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, do Instituto Militar de Engenharia, da Escola de Administração Fazendária, do Curso Rio Branco etc. O que tem impedido a generalização maior dessa tendência é o monopólio regulador do Ministério da Educação, que deveria ser reduzido.
 
c) Educação de elite. Essa é uma função que nenhuma sociedade dispensa, e que deveria ser tratada explicitamente no Brasil. Essencialmente, a forma para isso é a seleção de algumas instituições universitárias de alto nível, que possam diferenciar-se das demais e funcionar como centros nacionais de excelência. Existem aqui dois modelos clássicos possíveis, o francês e o inglês. No modelo francês, as Grandes Écoles selecionam pessoas de talento em todo o país e lhes proporcionam uma formação intensiva de alguns anos, que depois lhes permite completar a formação profissional em escolas especializadas, as Écoles d'Application. A educação de elite é feita, assim, fora do sistema universitário, trazendo com isso alguns problemas graves, como a dificuldade de conciliar a formação de alto nível com o desenvolvimento da capacidade de criação intelectual e de pesquisa[20] O modelo inglês consiste em concentrar a formação de elite em algumas universidades principais – Oxford, Cambridge – que tendem a proporcionar um estilo muito mais livre e tutorial de formação, mas também muito mais aristocrático em estilo e recrutamento do que o francês. Outras universidades em outros países desempenham a mesma função – a de Tóquio, no Japão, as universidades da chamada Ivy League, nos Estados Unidos. Uma diferenciação desse tipo, utilizando alguns desses modelos, deveria ser também buscada para o Brasil. A ideia de centros de excelência, tentada já em nosso meio para o nível de pós-graduação, deveria ser estendida às universidades como um todo.
 
A maneira de reduzir o aspecto discriminatório dessa formação de elites é dupla. Em primeiro lugar, é necessário garantir um amplo recrutamento de seus alunos, na base do mérito, em escala nacional, e com um sistema adequado de bolsas de estudo para garantir a permanência dos estudantes junto aos centros universitários. A outra é de caráter mais geral, e tem a ver com ir criando uma pluralidade de oportunidades educacionais e profissionais tal que faça com que só os realmente mais bem dotados e orientados para a formação proporcionada pelos centros de excelência se interessem por eles.
 
d) Ensino e formação científica. A ideia de que ensino e pesquisa científica devem estar sempre juntos não resiste a exame mais aprofundado, e deveria ser abandonada. A atividade de pesquisa e a formação dos futuros pesquisadores devem ser concentradas em alguns centros de alto nível, que não têm por que coincidir necessariamente com os centros de excelência de formação de elites. É desses centros que devem sair os professores universitários mais bem formados, que contribuirão para elevar padrões das escolas profissionais. Não há nada que impeça, e na realidade pode ser muito útil, que esses centros de excelência mantenham escolas profissionais experimentais ou padrão, que possam servir de exemplos e modelos para o resto do país.
 
A atividade de pesquisa, obviamente, não tem por que estar concentrada nas universidades. Mas é importante que exista uma vinculação próxima entre a pesquisa e a formação de futuros pesquisadores, em programas de pós-graduação especialmente orientados para esse fim.
 
e) Pós-graduação. A pós-graduação, no Brasil, criada com o objetivo de melhorar o nível do professorado universitário e evitar a queda de padrões provocada pela expansão do sistema de ensino superior, terminou, em grande parte, por se constituir em mais uma etapa do sistema educacional seriado, muitas vezes sem maiores acréscimos de qualidade. É possível distinguir, hoje em dia, pelo menos três funções diferentes que os quase mil cursos de pós-graduação hoje existentes no Brasil tratam de desempenhar:
 
credenciamento: as exigências de títulos pós-graduados para o preenchimento ou promoção de cargos de magistério superior criaram uma grande demanda de cursos de pós-graduação, combinada com uma grande pressão para a redução dos padrões de qualidade. Trata-se evidentemente de uma demanda artificial, e que termina por não produzir o efeito de melhoria de nível considerado necessário. O objetivo, nesse caso, deveria ser o de valorizar o conteúdo do conhecimento obtido na pós-graduação, menos do que do título formal, e dessa forma desinflar a pressão para novos cursos que hoje ocorre. Outro caminho possível é permitir a acreditação de conhecimentos pós-graduados para fins de carreira, de forma independente dos cursos de pós-graduação.
 
formação profissional: em algumas áreas, a pós-graduação simplesmente prolonga por mais alguns anos a duração dos cursos profissionais, com dois efeitos. O primeiro é adiar por mais alguns anos a entrada do aluno no mercado de trabalho, o que é sempre conveniente quando esse mercado está saturado, e quando existe uma pequena remuneração para o estudante na forma de uma bolsa de estudos; o segundo é compensar, de algum modo, a má qualidade de ensino em nível de graduação. O objetivo, neste caso, seria criar alguns programas de pós-graduação profissional com o objetivo explícito de treinamento para certas áreas especializadas do mercado de trabalho, e bem diferenciadas do outro tipo de pós-graduação indicado abaixo. O problema de busca de pós-graduação como forma de adiar a entrada no mercado de trabalho, tanto quanto o problema da má qualidade do ensino graduado, necessitam, evidentemente, de equacionamento próprio.
 
formação científica e de pesquisa: esse tipo de pós-graduação é, formalmente, o único que existe hoje no Brasil, ainda que de fato as duas funções mencionadas anteriormente predominem. Seria necessário distinguir a pós-graduação científica da pós-graduação profissional, e ambas da questão da acreditação e reconhecimento de capacidade, para fins de carreira docente. Essa distinção permitirá reduzir a pressão que hoje existe sobre os programas de pós-graduação mais acadêmicos, e o estabelecimento de critérios mais firmes de qualidade.
 
Em geral, a suspensão do reconhecimento dos títulos de pós-graduação pelo Ministério da Educação seria uma medida simples e de efeito muito salutar para o saneamento imediato do sistema brasileiro de pós-graduação.
 
O Estado e a educação
A nova agenda supõe, também, uma revisão profunda do papel do Estado em relação à educação em geral, e à Universidade em particular.
 
A questão do relacionamento entre o Estado e o sistema educacional tem sido usualmente distorcida por uma falsa polaridade entre estatização, burocratização e padronização, de um lado, e privatização, flexibilidade e pluralidade por outro. Na realidade, o sistema universitário hoje no Brasil combina o pior dos dois mundos: por um lado, um sistema altamente controlado, burocratizado e enrijecido; por outro, um predomínio de instituições de ensino privado, que primam pela baixa qualidade e custos crescentes para os estudantes.
 
A pós-graduação, no Brasil, criada com o objetivo de melhorar o nível do professorado universitário e evitar a queda de padrões provocada pela expansão do sistema de ensino superior, terminou, em grande parte, por se constituir em mais uma etapa do sistema educacional seriado O fato é que a educação não pode, hoje em dia, deixar de ser promovida e sustentada primordialmente pelo Estado, mas isso não deve implicar necessariamente os vícios da estrutura napoleônica que possuímos. Já existe hoje, no Brasil, uma série de mecanismos institucionais que têm permitido um aumento da flexibilidade e diferenciação das atividades educacionais e de pesquisa na área pública, que deveriam ser explicitados e fortalecidos: a ampliação da autonomia financeira e didática das Universidades, a criação de fundos de pesquisa com recursos a serem distribuídos por critérios de qualidade, a ampliação de um sistema de bolsas de estudo para permitir inclusive que estudantes sem recursos estudem em instituições particulares, são alguns mecanismos possíveis de serem implementados. Essencialmente, é necessário eliminar o controle burocratizado e cartorial do Estado sobre as instituições de ensino, próprias ou do setor privado, e substituí-lo por mecanismos de avaliação substantiva de cursos e programas, criações de unidades experimentais, equipes de assistência administrativa e pedagógica etc.
 
Isso exige, evidentemente, capacitar a administração educacional em um nível muito superior ao que ela tem hoje no Brasil. O problema com isso é que, quando um órgão governamental recruta pessoas na área educacional, universitária ou de pesquisa, essas pessoas tendem a perder progressivamente contato com sua origem, e adquirem, cada vez mais, o ethos da burocracia que as absorve. A única solução para isso é reduzir ao mínimo as burocracias, e aumentar tanto quanto possível a utilização de professores, educadores e pesquisadores na formulação das políticas educacionais públicas, sem retirá-los de seu meio. Comitês assessores de vários tipos, sistema de avaliação intelectual e acadêmica por peer review, grupos de trabalho especializados e de duração temporária, são vários dos mecanismos dessa ordem que já começam a ser utilizados timidamente no Brasil, e que deveriam ser incrementados.
 
Conclusão: problematizar a universidade e a educação
O importante dessa nova agenda não é a validade dessa ou daquela proposta tomada isoladamente, mas a possibilidade que ela pode eventualmente abrir para começarmos a pensar em nosso sistema educacional e nossas escolas superiores e universidades de maneira nova, refrescada, audaciosa e efetivamente problematizada. Antes de encontrarmos as soluções, é necessário aumentar, cada vez mais, a consciência sobre a profundidade dos problemas.
 
Essa preocupação renovada com a educação e a Universidade não nos deve fazer esquecer, no entanto, que a educação, em suas diversas formas, pode pouco. Os problemas da pobreza, do desemprego, da ignorância, da alienação, dependem de soluções a nível econômico, político e administrativo que não poderiam ser adiadas sob o pretexto de que, com a educação, eles se resolveriam naturalmente.
 
É importante, por outro lado, não deixar a educação para depois. Os sistemas educacionais podem ser, como vimos, um fator adicional de custos, desigualdade e alienação social, assim como têm um potencial pouco conhecido para gerar novos valores, novas perspectivas, novas soluções.
 

A Universidade, tanto quanto as demais áreas problemáticas do Brasil de hoje, não pode esperar.



[1] Segunda edição publicada em 2008: Biblioteca Virtual de Ciências Humanas, Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Por questões relativas à limitação de espaço, o texto aqui publicado suprime uma seção com dados estatísticos. A íntegra da obra é de acesso público e está disponível no endereço http://www.schwartzman.org.br/simon/polcon.pdf
 
[2] Darcy Ribeiro A Universidade necessária. Rio, Paz e Terra, 2ª ed., 1975, p. 18.
 
[3] ibid., p. 20
 
[4] Michel Crozier La societé bloquée. Paris, Seuil, 1970, p. 171.
 
[5] Ver a respeito Robert Gilpin, France in the age of the Scientific State, New Jersey, Princeton University Press, 1968; e Joseph Ben-David, Centers of Learning: Britain, France, Germany, United States. Berkeley, The Carnegie Commission on Higher Education, 1977.
 
[6] "The German Universities Commission", em Report on the German Universities, New York, The International Council on the Future of the University, 1977. (reproduzido em Minerva, XVI, 1, 1978.)
 
[7] Isso não significa, evidentemente, que não haja percepção das dificuldades, mas elas não parecem ser suficientes para alterar os projetos da grande maioria, até quando o fracasso se torna evidente.
 
[8] John Parker Harrison, The Universities vs. national development in Latin America. Austin, Institute of Latin American Studies, University of Texas, 1969.
 
[9] A idéia de que a educação passa a ser um componente essencial do novo conceito de cidadania nas sociedades modernas é bastante difundida, principalmente a partir da obra de T. H. Marshall, Citizenship and social Class. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1950; e principalmente Class, Citizenship and Social Development, New York, Doubleday, 1964.
 
[10] A principal tentativa brasileira de aplicação da abordagem do "capital humano" para os problemas de educação é a obra de Carlos Geraldo Langoni, A rentabilidade social dos investimentos um educação no Brasil, Rio, ANPEC, 1972; ver também Clóvis de Faro "Taxas de retorno dos investimentos em educação no Brasil", in Revista Brasileira de Economia, 29, 3, 1975, pp., 89-108.
 
[11] A referência clássica nesse contexto é o famoso "Coleman Report" (J. S. Coleman, Equality and educacional opportunity. US Government Printing Office, 1966). Ver também Martin Carnoy, The Limits of Educational Reform. New York, David McKay, 1976; OECD, Education, Inequality and Life Chances. Paris. OECD. 1975; e Thomas La Belle. Educational Alternatives in Latin America. Los Angeles, University of California Press, 1975.
 
[12] Dados extraídos do quadro de "despesa familiar", publicado pela Fundação IBGE, Anuário Estatístico, 1977, p. 699.
 
[13] Sobre o ideário da Escola Nova, ver, como publicação mais recente, Hermes Lima, Anísio Teixeira, estadista da educação. Rio, CiviIização Brasileira. 1978. Ver também Anísio Teixeira, Educação não é Privilégio, Rio, José Olympio, 1957.
 
[14] Joseph Ben-David, op. cit.
 
[15] Gilpin, op. cit.
 
[16] Loren Grahan "The formation of Soviet Research Institutes (a combination of revolutionery Innovation and International borrowing)", Social Studies of Science, v. 5, 1975.
 
[17] Ivan IIIich, Sociedade sem Escolas. Rio, Editora Vozes, 1973.
 
[18] A literatura sobre profissões (entendidas aqui como profissões de nível superior) é extensa. A título de introdução, ver, por exemplo, Philip Eliot, The sociology of professions. Londres, Macmillan, 1972; e Amitai Etzioni The semiprofessions and their organizations. New York, Macmillan, 1967.
 
[19] Aqui, como em outras partes do texto, o termo "profissional" corresponde às chamadas "profissões liberais", e não às profissões de nível "secundário".
 
[20] J. Ben-David "The rise and decline of France as a scientific centre", Minerva, VII. 2, 1970, pp. 160-79.