22/03/2007

reverendo Z

Os 50 sermões do reverendo Z.

Prefácio, em que ele destila seu rancor, e os dois primeiros sermões, em que discorre sobre espiritualidade de bar e verdade e liberdade

Carl Spitzweg
The poor poet (1837)

Afastado dos púlpitos há tanto tempo, resolvi por impulso publicar agora os esboços dos sermões que não tive o desprazer de pregar a crentes distraídos.


Nestes anos, escapei do tempo que desperdiçaria ouvindo, antes de pregar, aqueles louvores infantilóides que mais irritam ao Senhor do que lhe comprazem. Também poupei tempo que seria pessimamente empregado no relacionamento artificial com vaidosos sem conteúdo, mafiosos sem temor e mercadores sem escrúpulos, e ainda hoje sustento que a distância dos ex-colegas pastores me fez muito bem. A ética dos ateus reforçou minha fé em princípios que não precisam do cristianismo institucionalizado para existir. Evidente que há exceções. Não digo que sejam muitas ou poucas porque tal avaliação está fora do alcance das ciências exatas ou da intuição de palpiteiros.


Se um sermão diz alguma coisa útil em 30 minutos, não é preciso reuniões extras para falatórios enfadonhos e simulações patéticas de alta devoção (aquelas vozes enfatuadas sempre me deixaram constrangido). Recomendo que o máximo de tempo seja dedicado a namorar, ler, dançar ou simular algum passo de dança, beber com os amigos, gargalhar. É o rumo sábio para se desenvolver uma vida espiritual saudável. E este já é o meu sermão número 1.


São pouco mais de 50 mensagens relativamente rápidas, uma para cada domingo de um e apenas um ano, pois isso basta, da minha parte ao menos. É preciso ouvir e ler reflexões de outras pessoas. "Examinai tudo e retende o que é bom", já disse o apóstolo Paulo.


O segundo sermão do meu tardio e impaciente pastorado para uma congregação invisível é sobre liberdade. Disse o Senhor: conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Ora, daí se depreende que é a verdade  e não a força, o poder, o dinheiro ou mesmo coragem e ousadia  que nos liberta. Mas os crentes passaram a acreditar em meios externos de defesa e promoção da verdade, a saber, canais de TV, bancadas parlamentares, esquemas políticos, verbas desviadas, shows bizarros, estrelas Gospel. Outros confiam no poder do Vaticano e na infalibilidade do papa. A verdade se impõe por si mesma e não precisa dessas muletas, mas os crentes de todas as cepas não sabem mais qual é a essência de suas convicções, se é que as têm.


Das Escrituras também se deduz que tudo que não liberta não é verdadeiro. Porém o que mais se testemunha entre os cristãos é a profusão de amarras e peias. Onde não existem, algum pseudoteólogo as cria, novas, variadas, forjadas para atazanar os fiéis com os mais absurdos e injustificáveis pesos.


No texto vemos o Senhor validando as categorias da verdade e da liberdade. Alguém dirá: "há verdade"? Se não me engano aqueles que negam a possibilidade da verdade usualmente gastam páginas e páginas de argumentos para demonstrar que na verdade não há verdade. Categorias complexíssimas e sutis foram talhadas por engenheiros das idéias, ao cabo de anos e anos de prancheta, para sepultar a possibilidade da verdade  sem jamais pagar tributo à evidência de que precisavam, como todos nós, da confiança do leitor na correção do seu raciocínio. Em outras palavras, o pressuposto do discurso da inexistência da verdade é que ele próprio tem de ser aceito como verdadeiro, como qualquer discurso que não seja nonsense. Por que não entrar com humildade no jogo do embate de idéias, do convencimento, para atacar isso ou aquilo como falso e defender suas proposições como verdadeiras? Há quem queira, porém, levar a bola para casa, ou melhor, nos convencer de que não existe bola nenhuma. O Senhor, ele próprio, já se dispôs inúmeras vezes a entrar em campo. Há um registro belíssimo no livro de Isaías ("Vinde, pois, arrazoemos, diz o Senhor", 1:18).


Outro pode questionar se há liberdade. Só com liberdade de pensamento é possível chegar a um questionamento desses. C.S. Lewis já dizia em Cristianismo Puro e Simples que num universo totalmente composto por água, a idéia de seco não faria sentido nenhum. Se falamos em liberdade há tantos séculos, é porque, mesmo em cadeias, a idéia de liberdade faz todo sentido. A melhor "explicação" que conheço é a poética, de Cecília Meireles: "Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda". A liberdade essencial da fé bíblica é a liberdade de dizer não ao próprio Deus. O Senhor volta e meia iniciava suas falas com a fórmula "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Ou seja, quem não tem ouvidos para ouvir, não ouça, oras bolas. Ele até mesmo perguntava se fulano ou sicrano queria mesmo ser curado.


O que o Senhor nos diz serve também para aprender que qualquer verdade é libertadora, mesmo as comezinhas, cotidianas, banais. Um exemplo, especial para os religiosos reprimidos: mulher é bom. O corpo feminino é maravilhoso e nada mais natural que seja admirado e desejado.


Mas a verdade suprema a que o Senhor se refere naquele episódio é uma, e simples. Em resumo, que o próprio Deus se misturou com a humanidade para nos reconciliar com nosso significado e propósito. Que nossa relação pode e deve ser diretamente com ele. Que esse vínculo é de amizade. As implicações disso são maravilhosamente anárquicas. O Senhor mesmo se encarregou de espinafrar toda vez que teve chance a casta que monopolizava as chaves do Eterno. Nosso trato e reverência é com o Senhor  todos os caciques, coronéis, acadêmicos, prelados e gurus estão para todo sempre relativizados. "Teu é o Reino, o Poder e a Glória"  trecho ausente do Pai Nosso católico, o que é revelador do temperamento da Santa Sé, e lamentavelmente incompreendido em todos os seus desdobramentos pelas hostes evangélicas, tão propensas a aderir a qualquer poderzinho à primeira hora e a incensar os eloqüentes da moda.


Por fim, só o fato de que o Senhor se preocupe com nossa liberdade já é, em si, libertador.

 

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