06/12/2013

Valor Econômico

A bússola de Haddad

A maioria acha que paga imposto demais porque os políticos roubam e não porque muitos pagam menos do que deveriam. O professor pode dizer que é conversa de botequim, mas o político precisa convencer de que isso não é verdade

Maria Cristina Fernandes
Editora de Política do Valor Econômico
mcristina.fernandes@valor.com.br
 
A popularidade de Alckmin é o dobro daquela alcançada pelo prefeito da capital. O governador foi premiado pela inércia enquanto Haddad segue sua bússola de linhas retas e avança sem se importar quem estará ao lado quando chegar ao seu norte. Em conversa com um líder do Partido Republicano, radical defensor da abolição, Abraham Lincoln tenta convencê-lo a fazer concessões ao Congresso. Na cena retratada por Steven Spielberg, Lincoln fala da bússola que lhes diz onde está o norte mas não mostra os pântanos ou as montanhas do caminho. Para percorrê-lo não basta saber onde fica o norte, mas como fazer para alcançá-lo.
 
O líder captou a mensagem e subiu à tribuna. Recuou da posição que lhe dera fama no Congresso, a de que negros e brancos são iguais por natureza, e disse aos democratas que não precisavam mudar suas convicções, apenas aceitar que a lei tratasse igualmente as raças. O convencimento contou ainda com a nomeação de apaniguados de parlamentares rebeldes e farta distribuição de recursos públicos.
 
O PT avalia ter sido punido pela adoção do pragmatismo consagrado por Lincoln. Escolheu Fernando Haddad como principal representante da safra de petistas responsável por renovar as práticas políticas do partido. Ungido pelo partido, o ex-ministro de Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito prefeito de São Paulo porque conseguiu convencer o eleitor de que seu norte na política é o da maioria.
 
Há quase um ano no cargo, porém, tem dado sucessivas demonstrações de que escolheu escalar as montanhas e embrenhar-se nos pântanos para alcançá-lo. Na sua bússola, o caminho que contorna, desvia o traçado e se avizinha de rumos antes indesejados é aquela rota petista contra o qual lançou-se na política eleitoral.
 
A comparação com Luiza Erundina, a primeira prefeita de São Paulo eleita pelo PT, é necessária mas não suficiente para explicar o pântano em que resolveu se embrenhar.
 
Ao tomar posse, Haddad fez uma engenhosa reforma das subprefeituras, feudo dos vereadores. Nomeou técnicos para dirigi-las mas facultou aos vereadores a indicação dos chefes de gabinete. Dividiu o poder para melhor controlar.
 
Hoje parece mais próximo o dia em que Maluf ficará inelegível do que aquele em que Erundina venha a ser capaz de afugentar de seu partido, o PSB, os antigos correligionários do malufismo, de Santa Catarina ao Piauí. No passo seguinte, criou uma nova versão do orçamento participativo, usado por Erundina para enfrentar os vereadores. A ideia da eleição de 1125 conselheiros municipais, que acontecerá neste domingo, é aumentar a fiscalização e a cobrança sobre as políticas municipais, em especial sobre as subprefeituras. A estratégia de Haddad seria coroada com a redução do orçamento gerido pelos subprefeitos, mas a Câmara Municipal reverteu o esvaziamento.
 
O Legislativo, ao contrário do que aconteceu com Erundina, não lhe é hostil. No maior embate que enfrentou até aqui, o do IPTU, fez recuos pontuais mas o Datafolha mostrou que a resistência da Câmara tinha o respaldo da população.
 
Incorreu, com o IPTU, nos mesmos erros que cometera com a tarifa de ônibus. Todos os prefeitos reajustam um e outro, mas só depois que foi obrigado a recuar é que Haddad decidiu rever a licitação do sistema municipal de transporte para reavaliar seus custos.
 
Em seguida anunciou o aumento do IPTU e remendou-o com o anúncio de uma megaoperação mãos limpas no sistema de arrecadação municipal. Mais uma vez, inverteu a ordem. Tivesse feito o expurgo antes, talvez a população reagisse melhor quando instada a contribuir.
 
Pagou do próprio bolso o aluguel do bunker de investigação, mas o gesto acabou impedindo que o prefeito pudesse se manter afastado dos respingos que uma operação desse porte sempre tem sobre o partido no poder.
 
Por acreditar na pedagogia do poder, declarou que paga imposto com prazer. É algo que pode cair bem na disputa pelo diretório acadêmico, mas soa como um escárnio para a população que sustenta um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo.
 
O governador Geraldo Alckmin saiu tão desgastado quanto Haddad dos protestos de junho. De lá pra cá, sua polícia apanhou de manifestantes e o entranhado sistema de propinagem que mantém seu partido no Palácio dos Bandeirantes há 20 anos foi desbaratado. A grande maioria acha que paga imposto demais porque os políticos roubam e não porque muitos contribuintes pagam menos do que deveriam. O professor pode dizer que esta conversa é de botequim mas o político, além de convencer de que isso não é verdade, tem que comprometer os convencidos com as vicissitudes do poder.
 
Haddad, ao contrário de Erundina, sempre teve apoio de Lula. Posou com Paulo Maluf pela crença de que é a justiça que tem que dar cabo dele. Erundina saiu do PT e aproximou-se de Eduardo Campos, que faz política como Lula. Hoje parece mais próximo o dia em que Maluf ficará inelegível do que aquele em que Erundina venha a ser capaz de afugentar de seu partido os antigos correligionários do malufismo, de Santa Catarina ao Piauí.
 
O mesmo Haddad que acolheu Maluf jogou a corrupção de São Paulo nas costas de Gilberto Kassab às vésperas da aliança deste com o projeto de reeleição da presidente Dilma Rousseff.
 
O adiamento do projeto que permitiria a renegociação da dívida de São Paulo nada teve a ver com isso, mas quem gira a metralhadora para onde lhe dá na telha não deve esperar boa vontade do dono da casa que teve vidraças atingidas.
 
Erundina foi prefeita de um outro tempo. Era um país que se comovia com a morte de operários em greve, mesmo que acontecesse a milhares de quilômetros de São Paulo.
 
Entre os feitos de Alckmin está o de ter sido arrastado por Haddad a aderir ao bilhete único. Haddad é prefeito de uma era que cobra metas e resultados, ainda que um monte de gente tenha saído à rua para dizer que não se faz isso sem política.
 
As pesquisas dizem que é entre os jovens que sua imagem se recupera. Não são os únicos a usar bilhete único e os corredores de ônibus, mas é a faixa da população menos motorizada.
 
É alvissareiro que o prefeito esteja sintonizado com a nova geração, mas só dirigente de diretório acadêmico pode se conformar com essa plateia.
 
Na semana passada, o prefeito de Londres, Boris Johnson, disse que a desigualdade é uma questão de QI. Pelos próximos três anos, São Paulo não corre esse risco. O problema de Haddad é outro: fazer com que os bens postos abram espaço na maior cidade do país para esse Brasil menos desigual.
 
O governador Geraldo Alckmin saiu tão desgastado quanto Haddad dos protestos de junho. De lá pra cá, sua polícia apanhou de manifestantes e o entranhado sistema de propinagem que mantém seu partido no Palácio dos Bandeirantes há 20 anos foi desbaratado. Entre os seus feitos está o de ter sido arrastado por Haddad a aderir ao bilhete único.
 
A popularidade de Alckmin é o dobro daquela alcançada pelo prefeito da capital. O governador foi premiado pela inércia enquanto Haddad segue sua bússola de linhas retas e avança sem se importar quem estará ao lado quando chegar ao seu norte.