17/05/2022

original para Agência Fapesp

Tecnologia otimiza geração de energia verde pela indústria cervejeira com bagaço de malte

Descrito no Journal of Cleaner Production, processo desenvolvido pela Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp em parceria com o Worcester Polytechnic Institute avança na valorização de resíduos ao aplicar pré-tratamento com ultrassom e obter medidas exatas de balanço massa/energia

 

Um trabalho de quatro cientistas do Brasil e dois dos Estados Unidos demonstrou detalhadamente o ganho em energia elétrica e térmica obtido quando bagaço de malte, resíduo abundante na indústria cervejeira, é tratado com ultrassom antes de passar pelo processo de digestão anaeróbia – processo microbiológico que envolve consumo de nutrientes e produção de metano. O pré-tratamento gerou biogás com 56% de metano, 27% mais do que o obtido sem a aplicação do ultrassom. Com a queima do metano é possível produzir eletricidade, calor e biocombustível veicular com pegada de carbono muito baixa quando comparada às fontes fósseis convencionais. Já o “resíduo do resíduo”, após esse processamento, resulta em fertilizantes “verdes”. O estudo foi publicado em 19 de abril pelo periódico científico Journal of Cleaner Production, editado pela Elsevier (“Ultrasonic pretreatment of brewers’ spent grains for anaerobic digestion: Biogas production for a sustainable industrial development”).

 

Principal autora, Tânia Forster-Carneiro leciona na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2013 na área de bioengenharia e biotecnologia e é atualmente apoiada pela segunda bolsa Jovem Pesquisador (JP) da FAPESP. O JP visa a atração e fixação de talentos para o estado de São Paulo de pesquisadores com excelente experiência internacional. Forster-Carneiro concluiu o doutorado em Engenharia de Processos Industriais na Universidade de Cádiz (Espanha) em 2004. “Desde que eu entrei na Unicamp eu tenho projetos FAPESP grandes. A agência acreditou, me deu a bolsa, eu passei no concurso na FEA e o trabalho tem obtido tanto sucesso que eu ganhei o JP2, então estou há dez anos com projetos fomentados pela Fundação na mesma temática: digestão anaeróbia e valorização de resíduos da indústria de alimentos”, conta a cientista.

 

Atualmente todas as indústrias de alimentos possuem uma estação de tratamento de águas residuárias –  o tratamento de efluentes é determinado por lei –, porém não existe tratamento de resíduos, que são enviados para aterros. “Então são importantes essas pesquisas que visam a valorização desses resíduos, que são orgânicos. Nesse artigo especificamente, aplicamos um pré-tratamento de ultrassom –  uma tecnologia que ainda está iniciando e é feita em pequena escala – e com isso obtivemos um rompimento da biomassa com resultados muito bons”, comemora a pesquisadora. William Sganzerla, que cursa o 3º ano de seu doutorado direto na FEA-Unicamp (com bolsa da FAPESP) e também assina o artigo, explica que os resíduos da indústria cervejeira são lignocelulósicos, portanto a parede celular é muito difícil de tratar. “Se você colocar num reator de digestão anaeróbia matéria-prima que seja lignocelulose, o rendimento da produção de metano vai ser muito baixo, por isso você tem de aplicar um pré-tratamento para melhorar sua produção, e foi isso que a gente fez e reportou no artigo.”

 

O trabalho avaliou as rotas de recuperação de energia em todo o processo, concluindo que a eletricidade produzida pelo biogás compensou 80% da necessária para o pré-tratamento com ultrassom e para a digestão anaeróbia e gerou excedente 50% superior em energia térmica, comparando com o surplus em calor obtido com processo sem ultrassom. “A barreira tecnológica é você fazer um pré-tratamento sustentável que gaste pouca energia. Se você aplicar um pré-tratamento que tenha um gasto energético muito alto, não vai ser industrialmente aceito. Então a eletricidade vai migrar para o ultrassom e o calor vai reentrar na indústria para os diversos processos que necessitam de energia térmica, seguindo os princípios de economia circular”, detalha Sganzerla.

 

Segundo Forster-Carneiro, um fator determinante para que o artigo chamasse atenção foi o nível de detalhamento nas medições do trabalho. “Nós aprendemos a fazer os cálculos do balanço de massa e energia. Mostramos direitinho, por exemplo, que para cada tonelada de bagaço de malte eu consigo produzir 0,23 MWh em energia elétrica.” O paper também calcula o volume de gases de efeito estufa que o processo evita. A cientista conta que há mais de cinco anos tem trabalhado em colaboração com Michael Timko, professor do Worcester Polytechnic Institute (Massachusetts, EUA), também especialista em valorização de resíduos e coautor do artigo. “O trabalho ficou bem bacana, e tudo respaldado, porque a gente refez e verificou esses dados muitas vezes.”

 

Este experimento, entre outros, surgiu da boa relação da FEA-Unicamp com a fábrica da Ambev em Jaguariúna (SP), refletida em estágios, visitas técnicas e doação de matéria orgânica. Só essa unidade da fabricante de cerveja produz 250 toneladas de bagaço de malte por semana no verão, e 180 no inverno. “Atualmente não fazem nada com bagaço de malte. Colocam num silo e dão graças a deus quando criadores de suínos vão lá buscar de caminhão, contentes porque não precisam pagar aterro”, diz Foster-Carneiro. Neste contexto, Sganzerla ressalta os efeitos iminentes da Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei 12.305, de 2010). “Vai chegar o momento em que as indústrias vão precisar obrigatoriamente tratar os resíduos que geram, e aí vão precisar de tecnologia. Tecnicamente já é possível fazer, nós apontamos em nossos estudos que sim. Hoje não há indústrias que façam esse tipo de tratamento em larga escala porque por mais que a tecnologia de digestão anaeróbia seja antiga, para resíduos lignocelulósicos é uma tecnologia nova.”

 

O Brasil está entre os cinco maiores produtores de cerveja do mundo. Em 2019 foram produzidos 14 bilhões de litros da bebida, aponta o artigo. A produção de 100 litros de cerveja gera aproximadamente 20 kg de bagaço de malte.

 

Em outro artigo (“Techno-economic assessment of bioenergy and fertilizer production by anaerobic digestion of brewer’s spent grains in a biorefinery concept”), também publicado pelo Journal of Cleaner Production, em março de 2021, Forster-Carneiro, Sganzerla, Luz Selene Buller (também da FEA) e Solage Mussatto, do Departamento de Biotecnologia e Biomedicina da Universidade Técnica da Dinamarca, fazem uma detalhada avaliação das vantagens econômicas da valorização de resíduos, incluindo a geração de fertilizantes. “O processo de digestão anaeróbia trata resíduo com carga orgânica, consequentemente tem nutrientes, e dentro do reator sobra um digestato, fração sólida, basicamente material lignocelulósico tratado que contém nitrogênio, fósforo, potássio e muitos minerais. No caso do bagaço de malte você tem muito nitrogênio, a quantidade de proteína vai ser alta, você pode empregar esse resíduo como fertilizante e evitar o uso de NPK fóssil”, explica Sganzerla.

 

A equipe de Forster-Carneiro também vem pesquisando o pré-tratamento hidrotérmico do bagaço de malte, tendo já obtido uma patente. “Colocamos o resíduo em um reator que em certa temperatura e pressão hidroliza qualquer biomassa e produz um líquido com muito nutriente solúvel, o que é muito benéfico para o processo de fermentação, consequentemente para o processo de digestão anaeróbia. É um outro ramo que segue todos os princípios mencionados antes, mas do ponto de vista técnico é muito mais inovador”, diz Sganzerla.

 

Referências de fomento FAPESP:

Processos 18/05999-0; 18/14938-4; 19/26925-7; 20/10323-5 (códigos para busca na Biblioteca Virtual da FAPESP bv.fapesp.br)

 

clique aqui para ler a versão editada por Karina Toledo e publicada em 25 de maio de 2022