Um trabalho de quatro cientistas do Brasil e dois dos Estados Unidos demonstrou detalhadamente o ganho em energia elétrica e térmica obtido quando bagaço de malte, resíduo abundante na indústria cervejeira, é tratado com ultrassom antes de passar pelo processo de digestão anaeróbia – processo microbiológico que envolve consumo de nutrientes e produção de metano. O pré-tratamento gerou biogás com 56% de metano, 27% mais do que o obtido sem a aplicação do ultrassom. Com a queima do metano é possível produzir eletricidade, calor e biocombustível veicular com pegada de carbono muito baixa quando comparada às fontes fósseis convencionais. Já o “resíduo do resíduo”, após esse processamento, resulta em fertilizantes “verdes”. O estudo foi publicado em 19 de abril pelo periódico científico Journal of Cleaner Production, editado pela Elsevier (“Ultrasonic pretreatment of brewers’ spent grains for anaerobic digestion: Biogas production for a sustainable industrial development”).
Principal autora, Tânia Forster-Carneiro leciona na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2013 na área de bioengenharia e biotecnologia e é atualmente apoiada pela segunda bolsa Jovem Pesquisador (JP) da FAPESP. O JP visa a atração e fixação de talentos para o estado de São Paulo de pesquisadores com excelente experiência internacional. Forster-Carneiro concluiu o doutorado em Engenharia de Processos Industriais na Universidade de Cádiz (Espanha) em 2004. “Desde que eu entrei na Unicamp eu tenho projetos FAPESP grandes. A agência acreditou, me deu a bolsa, eu passei no concurso na FEA e o trabalho tem obtido tanto sucesso que eu ganhei o JP2, então estou há dez anos com projetos fomentados pela Fundação na mesma temática: digestão anaeróbia e valorização de resíduos da indústria de alimentos”, conta a cientista.
Atualmente todas as indústrias de alimentos possuem uma estação de tratamento de águas residuárias – o tratamento de efluentes é determinado por lei –, porém não existe tratamento de resíduos, que são enviados para aterros. “Então são importantes essas pesquisas que visam a valorização desses resíduos, que são orgânicos. Nesse artigo especificamente, aplicamos um pré-tratamento de ultrassom – uma tecnologia que ainda está iniciando e é feita em pequena escala – e com isso obtivemos um rompimento da biomassa com resultados muito bons”, comemora a pesquisadora. William Sganzerla, que cursa o 3º ano de seu doutorado direto na FEA-Unicamp (com bolsa da FAPESP) e também assina o artigo, explica que os resíduos da indústria cervejeira são lignocelulósicos, portanto a parede celular é muito difícil de tratar. “Se você colocar num reator de digestão anaeróbia matéria-prima que seja lignocelulose, o rendimento da produção de metano vai ser muito baixo, por isso você tem de aplicar um pré-tratamento para melhorar sua produção, e foi isso que a gente fez e reportou no artigo.”
O trabalho avaliou as rotas de recuperação de energia em todo o processo, concluindo que a eletricidade produzida pelo biogás compensou 80% da necessária para o pré-tratamento com ultrassom e para a digestão anaeróbia e gerou excedente 50% superior em energia térmica, comparando com o surplus em calor obtido com processo sem ultrassom. “A barreira tecnológica é você fazer um pré-tratamento sustentável que gaste pouca energia. Se você aplicar um pré-tratamento que tenha um gasto energético muito alto, não vai ser industrialmente aceito. Então a eletricidade vai migrar para o ultrassom e o calor vai reentrar na indústria para os diversos processos que necessitam de energia térmica, seguindo os princípios de economia circular”, detalha Sganzerla.
Segundo Forster-Carneiro, um fator determinante para que o artigo chamasse atenção foi o nível de detalhamento nas medições do trabalho. “Nós aprendemos a fazer os cálculos do balanço de massa e energia. Mostramos direitinho, por exemplo, que para cada tonelada de bagaço de malte eu consigo produzir 0,23 MWh em energia elétrica.” O paper também calcula o volume de gases de efeito estufa que o processo evita. A cientista conta que há mais de cinco anos tem trabalhado em colaboração com Michael Timko, professor do Worcester Polytechnic Institute (Massachusetts, EUA), também especialista em valorização de resíduos e coautor do artigo. “O trabalho ficou bem bacana, e tudo respaldado, porque a gente refez e verificou esses dados muitas vezes.”
Este experimento, entre outros, surgiu da boa relação da FEA-Unicamp com a fábrica da Ambev em Jaguariúna (SP), refletida em estágios, visitas técnicas e doação de matéria orgânica. Só essa unidade da fabricante de cerveja produz 250 toneladas de bagaço de malte por semana no verão, e 180 no inverno. “Atualmente não fazem nada com bagaço de malte. Colocam num silo e dão graças a deus quando criadores de suínos vão lá buscar de caminhão, contentes porque não precisam pagar aterro”, diz Foster-Carneiro. Neste contexto, Sganzerla ressalta os efeitos iminentes da Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei 12.305, de 2010). “Vai chegar o momento em que as indústrias vão precisar obrigatoriamente tratar os resíduos que geram, e aí vão precisar de tecnologia. Tecnicamente já é possível fazer, nós apontamos em nossos estudos que sim. Hoje não há indústrias que façam esse tipo de tratamento em larga escala porque por mais que a tecnologia de digestão anaeróbia seja antiga, para resíduos lignocelulósicos é uma tecnologia nova.”
O Brasil está entre os cinco maiores produtores de cerveja do mundo. Em 2019 foram produzidos 14 bilhões de litros da bebida, aponta o artigo. A produção de 100 litros de cerveja gera aproximadamente 20 kg de bagaço de malte.
Em outro artigo (“Techno-economic assessment of bioenergy and fertilizer production by anaerobic digestion of brewer’s spent grains in a biorefinery concept”), também publicado pelo Journal of Cleaner Production, em março de 2021, Forster-Carneiro, Sganzerla, Luz Selene Buller (também da FEA) e Solage Mussatto, do Departamento de Biotecnologia e Biomedicina da Universidade Técnica da Dinamarca, fazem uma detalhada avaliação das vantagens econômicas da valorização de resíduos, incluindo a geração de fertilizantes. “O processo de digestão anaeróbia trata resíduo com carga orgânica, consequentemente tem nutrientes, e dentro do reator sobra um digestato, fração sólida, basicamente material lignocelulósico tratado que contém nitrogênio, fósforo, potássio e muitos minerais. No caso do bagaço de malte você tem muito nitrogênio, a quantidade de proteína vai ser alta, você pode empregar esse resíduo como fertilizante e evitar o uso de NPK fóssil”, explica Sganzerla.
A equipe de Forster-Carneiro também vem pesquisando o pré-tratamento hidrotérmico do bagaço de malte, tendo já obtido uma patente. “Colocamos o resíduo em um reator que em certa temperatura e pressão hidroliza qualquer biomassa e produz um líquido com muito nutriente solúvel, o que é muito benéfico para o processo de fermentação, consequentemente para o processo de digestão anaeróbia. É um outro ramo que segue todos os princípios mencionados antes, mas do ponto de vista técnico é muito mais inovador”, diz Sganzerla.
Referências de fomento FAPESP:
Processos 18/05999-0; 18/14938-4; 19/26925-7; 20/10323-5 (códigos para busca na Biblioteca Virtual da FAPESP bv.fapesp.br)
clique aqui para ler a versão editada por Karina Toledo e publicada em 25 de maio de 2022