30/07/2013

O Globo

Metamídia

A dicotomia entre as redes sociais e a mídia tradicional

Francisco Bosco
No último domingo, a “Folha de S.Paulo” publicou um editorial intitulado “Mitos das redes sociais”, em que reconhece a utilidade das redes sociais “como ferramenta profissional e recreativa” e critica seus “aspectos mais controversos”. Vou fazer aqui com a “Folha” o que as redes sociais têm feito com a mídia tradicional; e, fazendo-o, pretendo demonstrar, em ato, os equívocos de compreensão desse editorial.
 
Começo observando o ligeiro descompasso entre o texto e a realidade, ao enfatizar a utilidade recreativa das redes sociais num momento em que milhares de pessoas vão protestar nas ruas — no Rio de Janeiro já há mais de 40 dias, sem descanso — mobilizadas justamente pelas redes. Essa mobilização faz parte do que o editorial considera os “aspectos mais controversos da rede”. Passemos a eles.
 
 
O editorial da Folha está equivocado ou usa de má-fé ao afirmar que “as redes são uma ampla câmara de ressonância da própria mídia” “À primeira vista um enorme fórum de livre debate, as redes são formadas por células que mais reiteram as próprias certezas e hábitos do que os submetem a discussão. Esta, quando ocorre, adquire tons de estéril guerrilha verbal”, afirma a “Folha”. Muitos livros sobre as redes já notaram essa tendência a que cada usuário forme uma rede pessoal que espelhe suas posições ideológicas (as tais “células” do editorial). Essa tendência me parece verdadeira, mas o fundamental aqui é que essa crítica se volta também contra a mídia tradicional, com a mesma pertinência — e isso nunca foi tão explicitado, nunca se tornou tão evidente quanto agora, precisamente pela produção crítica que circula nas redes.
 
Em primeiro lugar, as redes são antes uma ampla câmara de dissonância da mídia tradicional A grande mídia tradicional abre espaço para o contraditório — a presente coluna comprova-o —, mas sua visão dominante tende a construir a realidade para seus leitores segundo os mesmos princípios acima criticados. Nesse momento histórico dos protestos, não tem sido possível sustentar uma suposta naturalização da produção da realidade (a realidade, não custa ser didático aqui, é sempre uma produção). Os ideários políticos que orientam a interpretação da realidade foram escancarados. E para isso muito têm contribuído as redes sociais. Vou dar um exemplo, servindo-me do próprio GLOBO. O Papa Francisco, em seu discurso no Teatro Municipal, disse a seguinte frase: “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo”. No dia seguinte, a manchete da capa do GLOBO era: “Papa prega diálogo contra protestos violentos”. Ora, o Papa criticou, ao mesmo tempo, o Estado surdo e a resposta violenta das ruas. Ao optar por suprimir a crítica do Papa ao Estado (no caso, a carapuça serve como uma luva ao Governador Sérgio Cabral), o jornal praticou precisamente uma “reiteração das próprias certezas”.
 
Depois, a expressão “conteúdo informativo” me parece, salvo engano, capciosa. Ela parece considerar informativo apenas o que é link, descartando da conta todos os demais posts críticos São críticas como essa que circulam nas redes sociais, convidando-nos a compreendê-la como uma espécie de metamídia: uma imensa e constitutivamente descentrada mídia que submete a mídia tradicional a leituras críticas. Daí que o editorial da “Folha” esteja equivocado ou agindo de má-fé ao afirmar que “as redes são uma ampla câmara de ressonância da própria mídia”, e que “80% do conteúdo informativo tramitado pelo Twitter, por exemplo, relativo às jornadas de junho passado, era produzido pelo jornalismo profissional, da imprensa e da TV”. Em primeiro lugar, as redes são antes uma ampla câmara de dissonância da mídia tradicional. Depois, a expressão “conteúdo informativo” me parece, salvo engano, capciosa. Ela parece considerar informativo apenas o que é link, descartando da conta todos os demais posts críticos. É uma espécie de petição de princípio: só considera informação o que ela mesma produz, e então conclui que ela produz a maior parte da informação. Eis aí, uma vez mais, a tal reiteração das certezas e hábitos que o editorial projeta (em sentido psicanalítico mesmo) nas redes sociais.
 
Ninguém — nem sujeitos, nem instituições — interpreta a realidade, a cada momento, a partir de uma tábula rasa. Todos a interpretam a partir de um sistema complexo a envolver tendências (ou convicções) ideológicas, imaginárias, afetivas etc. Nesse sentido, a metamídia das redes produz ao menos um efeito contraideológico. Por outro lado, é dever de todo sujeito e de toda instituição públicos pôr à prova essas certezas ou hábitos medindo-os contra os fatos, procurando comparar os argumentos de maneira mais justa, mantendo o espírito livre de sectarismos, mobilizando, em suma, todos os recursos possíveis para que se atinja uma compreensão mais precisa da realidade. O compromisso do jornalismo é com a verdade, e não com a tentativa de adaptar os fatos a uma visão prévia da realidade. Isso vale tanto para a mídia tradicional quanto para as novas mídias, como a NINJA.