22/09/2006

O Estado de S. Paulo

Pastor Caio Fábio diz que foi pressionado pelo PT no caso Dossiê Cayman

Esta versão é bem maior do que a publicada pelo Estadão. Abaixo da matéria, publicamos anexo com trechos em que o reverendo complementa suas opiniões sobre a falência do cristianismo, dadas em entrevista para o site Teologia Brasileira em 2005

Não é de hoje que membros do Partido dos Trabalhadores buscam avidamente informações pessoais comprometedoras para desqualificar quem lhe é incômodo politicamente. Não é de hoje que o PT se dá mal nessas tentativas. Pelo relato do ex-pastor evangélico Caio Fábio D'Araújo Filho, assim foi na campanha presidencial de 1998. Naquela vez, o partido conseguiu tirar a tempo o corpo da linha de tiro. Quem se deu mal mesmo foi ele. Caio Fábio, suposto intermediador do caso Dossiê Cayman, detesta imaginar que seu nome estará associado para sempre ao escândalo de falsificação. "Não agüento mais ter vivido 27 anos por uma causa, e, por um episódio, ter minha existência estigmatizada."

 

O reverendo alcançou na década de 1990 um status inédito: foi um líder evangélico respeitado em todo País. Com a Fábrica de Esperança, um ambicioso projeto social em Acari, no Rio, Caio Fábio foi incensado pela mídia e acostumou-se a receber visitas ilustres. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, apareceu lá em janeiro de 1995, no início do primeiro mandato na Presidência da República.

 

Mas todo prestígio se desmanchou no ar quando, durante a campanha presidencial de 1998, Caio Fábio foi acusado de intermediar o chamado Dossiê Cayman, uma papelada que comprovaria que FHC, José Serra, Sérgio Motta e Mário Covas mantinham centenas de milhões de dólares em um paraíso fiscal no Caribe. Investigações posteriores apontaram os documentos como pura armação. 

 

Processado por calúnia pelo então presidente, o pastor só se viu livre das acusações no ano passado [2005] inocentado pelo depoimento de Eduardo Jorge, ex-secretário de FHC. Aos 51 anos, casado pela segunda vez, rompido com o meio evangélico e líder de um grupo cristão alternativo com 3 mil membros em Brasília, Caio Fábio está recomeçando. "Minha reclusão passou da hora de acabar. Quem quiser vir pro pau que venha. Mas nada quero com temas políticos, só quero propagar a fé bíblica."

 

"Em 1998 eu fui deixado com uma mão na frente outra atrás, nessa história do Dossiê Cayman, por um PT que posou de ético. E é tudo mentira. O pessoal do PT é que ficou atrás de mim", explica. Caio Fábio conta que sabia do dossiê desde 1997, mas manteve absoluto silêncio por razões de ética profissional. "Não contei nem pra mãe dos meus filhos. Eu vivo de ouvir histórias há anos. Se eu começar a abrir a boca, milhares de casamentos acabam na mesma hora, um monte de líder evangélico cai dos seus troninhos e um monte de político se arrebenta."

 

O pastor tornou-se amigo de Lula no papel de consultor sobre o meio evangélico. "Tive um relacionamento de uns dez anos com o Lula, de conversas freqüentes e longas. Tudo começou pouco depois da derrota para Collor, com a Igreja Universal colocando ele de chifre, rabo e tridente na mão", conta.

 

Segundo Caio Fábio, em meados de 98 Lula veio fazer uma visita à Fábrica de Esperança com Leonel Brizola (vice de Lula na campanha de 98), Anthony Garotinho (à época membro do PDT), Benedita da Silva e outros. "Naquele dia apareceu lá um cara que Lula conhecia há muito mais tempo do que eu e que tinha sido a pessoa que me contou a história de Cayman na Flórida. Eles se abraçaram como velhos amigos. Esse indivíduo me abordou na minha ante-sala e me disse o seguinte: 'Reverendo, eu não disse pro senhor que é todo mundo igual? Contei aquela história pro Lula e ele está louco atrás daquilo.' Depois o próprio Lula me abordou: 'Como você não me conta uma coisa dessas?'"

 

A partir daquele momento, líderes do PT passaram a pressioná-lo para que participasse da divulgação do dossiê, por conta de sua influência e credibilidade na sociedade civil. "Havia ligações, meia-noite, todo dia, às vezes a Bené (Benedita da Silva) estava chorando: 'Meu reverendo, pelo amor de Deus salva a gente. Sem essa história o Lulinha não vai ganhar. Nós jamais vamos conseguir. Não deixa a gente nessa, pelo amor de Deus.' Deus é minha testemunha, e as contas telefônicas também, de quem ligava pra quem. Até mesmo o José Dirceu veio ao Rio conversar comigo. A covardia foi tão grande que à medida que o tempo foi passando, e ficou patente que a papelada era uma grande operação de falsificação, eles foram transferindo tudo para as minhas costas. De repente, o Dossiê Cayman era uma coisa do Caio."

 

O pastor diz, porém, que não guarda mágoas e não comemora este momento em que o PT passa de estilingue para vidraça. "Não celebro todos estes escândalos. Fiquei triste, mas não aquela tristeza dos ingênuos. Não tenho surpresas porque o PT que eu fui conhecendo era capaz disso", afirma. 

 

Ele também não crê em castigo exemplar dos envolvidos em corrupção. "Existe no inconsciente coletivo brasileiro o seguinte: a impunidade pode até continuar desde que a mídia cumpra o papel de chicoteamento público do indivíduo numa praça, ou seja, se a mídia pegar o cara, tirar a roupa dele com meticulosidade, descer-lhe o azorrague por dias e dias sem fim, puser as vísceras dele pra fora e mostrar de que material ele é feito, a população dá o juízo como realizado, a impunidade continua, a mídia muda de pauta e a investigação pára. Na hora em que o indivíduo se torna um fantasma, um ser irrecuperável, dá-se a justiça como feita."

 

 

 

[+] trechos não utilizados na matéria:

 

"Eu disse pro Lula que era melhor ficar amigo de bicheiro do que de certos evangélicos, e que quanto mais perto da cacicada eclesiástica, mais perto do banditismo" Você não poupa o meio evangélico, que conhece muito bem. Por quê?
Caio Fábio - Eu acredito que desde a intervenção do Imperador Constantino em um movimento de escravos, simples, de base, não-hierarquizado, leve, livre, e que se propunha apenas a ser um caminho de fé, tudo o que chamamos de Cristianismo é uma produção que não tem absolutamente nada a ver com Jesus. Até o 4º século essa fé jamais construiu um templo. Os cristãos viviam de casa em casa, num movimento que acabou tomando a capital, Roma, que estava em estado de dissolvência política, toda desestruturada. Ali a fé em Jesus foi proliferando imensamente, até virar a única malha que conectava o império todo. Num dado momento o imperador alega ter se convertido, o que foi uma tragédia para a história da fé, porque carregava interesses de natureza política. Ele cooptou um grupo de seres que tinham introjetado quase 300 anos de perseguição. De repente uma espécie de sonho de consumo aconteceu. Imperador se tornar cristão oficializa aquela fé como Fé do Estado. Para o que Jesus tinha começado, foi uma pá de cal.

Como você aplica essa contextualização às igrejas evangélicas no Brasil?
Caio Fábio - A ditadura militar, pela perseguição que fez aos chamados liberais católicos e protestantes, tirou de dentro da igreja as cabeças mais libertas, mais livres, e deixou dentro da igreja, por conseguinte, o que havia de mais conservador, fundamentalista, legalista, moralista e fechado, especialmente na Igreja Evangélica. Era uma época na qual Romanos 13 passou a ser o cabeçalho da Igreja Evangélica, ou seja, "obedecei as autoridades porque são ministros de Deus". Os crentes resolveram ficar com os militares santificados, o que já demonstrava uma necessidade enorme de se deixar cooptar pelo poder por um complexo de minoria muito grande. Os protestantes e os pentecostais sofriam de um complexo de minoria aterrador. Se sentiam pequenos, discriminados, não tinham lugar na mídia, eram tratados como seita, toda vez que aparecia o nome de um pastor no jornal era entre aspas. Na década de 80, os evangélicos se animaram numa euforia extraordinária para criarem uma bancada evangélica que surgiu até grande naquele momento, com mais de 30 deputados federais. Eu digo desde aquela época que aquilo não era bancada evangélica, era cambada evangélica. Logo dali surgiu o Centrão, todas essas manipulações, essa obsessão por canais de televisão e de rádio, porque evangélico é tarado por televisão e rádio. Essa avidez por poder está no nascedouro constantiniano, nunca parou, a reforma protestante não diminuiu isso. A década de 90 só foi especial por uma razão: porque foi a década do surto evangélico. Houve uma euforia de poder. Conseguimos eleger os primeiros representantes no Congresso, e começaram a dizer nos púlpitos: "Vamos conseguir eleger os primeiros governadores". Em 90, então, de repente tem um boom. Eu que estou pregando desde 1973 na televisão e era ouvido por milhões de pessoas, nunca fiz propaganda de igreja evangélica, só do Evangelho, nunca fiz proselitismo de natureza nenhuma. Até ali, eram iniciativas midiáticas de natureza sóbria e discreta. Foi de 89 em diante que a loucura começou, quando a Igreja Universal do Reino de Deus, que já estava na TV, partiu para uma agressividade jamais vista, que produziu uma estupefação na sociedade, especialmente na Igreja Católica e na mídia.

Você foi sistematicamente atacado pela Igreja Universal naquela época
Caio Fábio - Eu me lembro do doutor Roberto Marinho me chamando pra ir à sala dele, no início dos anos 90, me pedindo para descrever que fenômeno era aquele, que chegava com uma volúpia tão grande, com um volume de dinheiro incalculável, vendendo um produto que não tinha igual no mercado, porque não demandava nada para fabricar, não tinha nenhum custo de investimento, não tinha absolutamente nada, era invisível, imponderável e intangível e valia o preço que o necessitado achasse que devia pagar por ele. Aí ele disse algo assim: "Isso não é uma fé, é um grande negócio, como é que eu vou competir com esse negócio? Porque se eles estivessem pregando a fé, eles não seriam meus competidores, mas eles pregam a fé para chegarem a ser meus competidores. Só que eu gasto 2 bilhões para produzir a minha televisão e tenho um lucro de 300 milhões no final do ano, e eles não gastam nada, arrecadam tudo, tudo entra limpo, tudo entra sem imposto, você não sabe nem de onde vem, as origens do recurso, o resultado final é que o produto não tem custo, o valor dele é imponderável, o arrecadado é imensurável e não dá pra competir com esse poder. Que poder é esse?" Aí tive que explicar a ele que a IURD era uma miscigenação, um sincretismo, de várias formas e crenças presentes entre nós. A IURD tem um grito de guerra identificável pelos ouvidos evangélicos (Jesus Cristo é o Senhor) que aplaca todos os segmentos evangélicos. Do lado de dentro tem uma arquitetura bem montada com o conteúdo mais pagão possível. É um sistema de troca, de barganha, não é diferente da macumba. Na IURD a troca é feita com dinheiro. Em alguns terreiros é com cachaça, charuto, farinha. Na Universal só serve grana. A Reforma foi gerada porque indulgências e perdões estavam sendo vendidos para o papa concluir o Vaticano. O que a IURD faz é infinitamente mais descarado. Naquele tempo pelo menos a indulgência tinha finalidade transcendental, de pagar pela salvação, o indivíduo ainda almejava a transcendência. O que a IURD faz não tem nenhuma vinculação com o eterno, tudo está vinculado a mais um carro, mais uma empresa, mais um baú da felicidade, mais um amuleto, o mais poderoso de todos. Você tem sempre no meio de 10 mil, cem que com fé ou sem fé, com placebo, com Deus ou sem Deus, por obstinação realizam as coisas que dizem realizar, acontece no mundo inteiro, é estatístico. Eles pegam esses indivíduos para dar testemunho.

Você foi o único líder evangélico a conquistar projeção nacional positiva, nos anos 90. Era respeitado pelos projetos sociais mantidos por sua ONG, a Vinde, como a Fábrica de Esperança, em Acari, no Rio. Tinha amizade com políticos, batizou e casou alguns. Com o seu conhecimento íntimo do meio político, como avalia os escândalos que se sucederam no governo Lula?
Caio Fábio - Não celebrei o que aconteceu. Fiquei triste, não aquela tristeza dos ingênuos. Não era impossível. Não tenho surpresas porque o PT que eu fui conhecendo era capaz disso, mas não acho que é grana pela grana - o capital pelo qual se remuneram é poder político. Pode mandar quebrar o sigilo do Zé Dirceu que você não encontra nada incriminador. Eles ainda estão, digamos assim, na fase mais primitiva da corrupção - "a gente pode usar o dinheiro se for para finalidade boa, e nós somos a boa finalidade". É como evangélico faz também, ou você acha que campanhas de políticos evangélicos são feitas de outro modo? É tudo igual. Agora, o que eu senti diante disso tudo foi muita tristeza de ver o cara naquele estado. Apesar do dossiê Cayman eu votei nele, torci por ele, me alegrei com ele e com a Marisa, chorei de emoção quando o vi naquele palanque ali na Avenida Paulista. Porque no meu coração eu dizia: "Esse cara não é perfeito, ninguém é. Pelo menos ele tem origem pobre, já padeceu, já sofreu. E eu sei que a ambição dele não é grana pra botar no bolso. Eu sei que a vontade dele é outra". Apesar de Dirceu e Gushiken, eu continuo acreditando que o cara chamado Lula não perdeu o sonho, embora esteja terrivelmente mal assessorado, na minha maneira de ver, esse tempo todo. O Fome Zero, por exemplo, me deu pena. Para tocar aquilo ali, tinha de ter um ser carismático. Tem de ser coisa de um Mahatma Gandhi, de um Betinho. O Comunidade Solidária tinha uma articulação muito maior. Minha esperança hoje é que esse cacete [dos escândalos] tenha aberto algumas coisas na cabeça dele. Peço a Deus que ele se cerque de gente mais lúcida, mais competente, menos ideologizada, menos sindicalizada, menos presa ao espírito corporativista e ao fisiologismo. Mas eu tenho um grande carinho pelo Lula, não guardo mágoa nenhuma.

"Esse cara não é perfeito, ninguém é. Pelo menos ele tem origem pobre, já padeceu, já sofreu. E eu sei que a ambição dele não é grana pra botar no bolso. Eu sei que a vontade dele é outra" Você era amigo do Lula, tinha muito contato com ele?
Caio Fábio - Sim, nossa primeira conversa, há mais de 15 anos, que durou umas 6 horas, foi para explicar pra ele como o mundo evangélico pensava. Ele já era um cara mais aberto, que já tinha levado alguns cacetes. Mas tinha ficado chocado com a forma como o meio evangélico tinha demonizado ele em 1989. Naquela época eu era uma espécie de unanimidade nacional, e ele pediu que eu explicasse o que era aquele mundo. Eu disse pra ele que era melhor ficar amigo de bicheiro do que de certos evangélicos, e que quanto mais perto da cacicada eclesiástica, mais perto do banditismo. Ele já era um homem aberto, querendo ser apresentado a empresários.

Acredita em punição dos acusados de montar e de se beneficiar do esquema do mensalão, por exemplo?
Caio Fábio - O Brasil vai sucedendo escândalos. Existe na mentalidade, no inconsciente coletivo brasileiro o seguinte: a impunidade pode até continuar desde que a mídia cumpra o papel de chicoteamento público do indivíduo numa praça, ou seja, se a mídia pegar o cara, tirar a roupa dele com meticulosidade, descer-lhe o azorrague por dias e dias sem fim, puser as vísceras dele pra fora e mostrar de que material ele é feito, a população dá o juízo como realizado, e a impunidade continua, e a mídia muda de pauta e a investigação pára. E a própria polícia é pautada pela mídia, e o próprio ânimo governamental de investigação é pautado e incentivado pela mídia, de forma que praticamente não existe investigação no Brasil que não seja instigada pela mídia. E também, paradoxalmente, a maioria das investigações no Brasil não vai até o fim porque começam na mídia e terminam na mídia, porque na hora em que o indivíduo se torna um fantasma, um ser irrecuperável, dá-se a justiça como feita.