12/11/2006

Estadão

Chicão, um apaixonado pelo Brasil

Nos anos 40, Francisco Brasileiro já era um sertanista veterano quando os irmãos Villas Bôas só estavam começando

reprodução | O Estado de S. Paulo | p. A30
domingo, 12/11/2006

Se fosse um pai de família como qualquer outro, levaria filhos e sobrinhos pequenos para passear na praia. Mas Francisco Brasileiro (1906-1989), o Chicão, reuniu cinco crianças – os três filhos e mais dois sobrinhos – e, partindo de São Paulo em julho de 1949, enfiou-se sertão adentro até topar com o Rio Araguaia. Foram caçar, nadar e visitar índios javaés e carajás, em um giro que durou 40 dias.

Se fosse uma família convencional, provavelmente a idéia de levar fedelhos para os confins do País teria sido rechaçada com veemência por mães indignadas. Mas não se tratava de uma família comum. Não só a idéia foi aprovada, como Ana Maria, filha de Chicão, ficou responsável pelo diário de viagem, tarefa que cumpriu espantosamente bem, considerando que tinha apenas 10 anos de idade.

Sertanista de 1,95 metro de altura e contador de prosa de repertório ilimitado, Francisco Brasileiro participou nos anos 30 e 40 das primeiras incursões ao Brasil Central, região à época pouquíssimo conhecida. Primeiro branco a dar de cara com um índio xavante, ajudou a fundar cidades. Também escreveu roteiro de cinema, peça de teatro e 15 livros.

A temática predileta, evidente, era a gente, a paisagem e as peripécias pelo País profundo, mas ele também gostava de viagens interiores: escrevia poesia e arriscou uma desconcertante ficção sobre a loucura. Nos intervalos entre as temporadas no lombo de cavalo e à escrivaninha, surfava (adorava o mar) e voava de helicóptero. Hábil, talhava em madeira belos oratórios – ainda que não fosse nada religioso.

Casado com Maria do Rego Freitas, da tradicional família de cafeicultores paulistas, o filho de italianos nascido em Jaú (SP) dedicou a vida às aventuras. "Ele teve a sorte de ter vivido por mais de 50 anos com uma mulher maravilhosa, que praticamente bancava a casa", diz sua primeira neta, Joana, de 36 anos. "Mas não tinham uma fortuna não, porque os Rego Freitas já eram mais tradicionais do que abastados naquela época", explica. "A avó Maria trabalhou desde muito cedo, tornou-se procuradora do Estado."

 

JORNADAS

Em 1923, com 17 anos, Chicão abandonou o emprego de corretor de seguros e imóveis e trabalhou como tropeiro, levando burros de Itapetininga, região de Sorocaba, no interior paulista, para Santa Maria (RS). Com 24, fez a primeira expedição ao Rio das Garças, que rendeu o livro de contos Terra sem Dono, obra que recebeu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras.

Em 1932, enquanto estourava a Revolução Constitucionalista, explorou o Araguaia com o amigo Hermano Ribeiro da Silva, com quem já viajara em 1921. Hermano morreria seis anos depois de malária, quando ambos integravam a Bandeira Anhangüera. O destino da expedição de 40 homens, lançada em 1937 e que prosseguiu até o ano seguinte, era a Serra do Roncador, no leste de Mato Grosso, terra dos temidos índios xavantes. O resultado foi duplo: a coleta de preciosos objetos indígenas, doados ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, e o livro Na Serra do Roncador.

Em 1943, tendo já acumulado larga experiência, Chicão foi o subchefe da expedição Roncador- Xingu, organizada pela Fundação Brasil Central por ordem do ministro da Mobilização Nacional, João Alberto Lins de Barros (que fora um dos líderes da Coluna Prestes). Definido por Getúlio Vargas, preocupado com controle do território em plena 2ª Guerra Mundial, o objetivo era acima de tudo militar: esquadrinhar e ocupar o interior. Foi neste projeto que três jovens iniciaram sua carreira de sertanistas: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas.

Encarregado dos serviços de vanguarda, Chicão acabou se desentendendo com os superiores, que determinaram um limite às explorações. Ele queria se embrenhar ao máximo pelo sertão, mas acabou voltando mais cedo para sua casa no Jardim Paulista, na capital.

FAÇANHAS E TRAGÉDIAS
Chicão e seus companheiros fundaram as cidades de Aragarças (GO) e Xavantina (MT). Em 1938, enquanto o padre salesiano Chovelon abordava diplomaticamente numa praia do Rio das Mortes um grupo menos hostil dos índios que planejava doutrinar, o grandalhão, frente a frente com um xavante que defendia sua aldeia, recorria a fogos de artifício a fim de colocá-los pra correr. Consta que este foi o primeiro contato de um branco com um xavante.

Depois da fase de explorações, ele bateu perna atrás de jazidas de ouro. Chegou ao Acre em lombo de boi, gastando o triplo do tempo, porque os cavalos tinham sido acometidos pela "peste das cadeiras". Com quase 70 anos de idade, não sossegava em casa, orientando a construção de pistas de pouso e de rodovias. Nunca levou flechada nem borduna na cabeça e sobreviveu a 18 "maleitas" (malária). Mas viu companheiros queridos, sem a mesma sorte, perecendo na mata fechada ("Em cada viagem perdi um companheiro! Mas acredito em você, sertão querido", desabafou em um de seus relatos).

A tragédia de sua vida, no entanto, foi perder o próprio filho para o sertão. José Francisco morreu em 1974, aos 29 anos. Como que para demonstrar ao pai que também era capaz de grandes feitos, partiu sozinho para o Xingu. Nunca mais voltou. Dizem que foi morto por um carajá, por motivo jamais esclarecido. Seu diário, manchado de sangue, foi encontrado, mas o corpo, nunca.

BRASILEIRO
Nascido em 1906, Francisco Brasileiro Pilagalo achou por bem adotar o segundo nome como o sobrenome de seus descendentes. Tamanha era sua paixão pelo Rio Araguaia, que conhecia desde os 18 anos de idade ("Aquele ambiente transforma por completo o indivíduo, como que infantilizando-o; o ceticismo desaparece", escreveu), que a um dos filhos (o pai de Joana) batizou de João Araguaia.

Machista, Chicão incentivou – do seu jeito – a filha Ana Maria a seguir uma carreira profissional. "Casamento não é solução para a mulher do século 20", advertia. O pai severo gostava de repetir que "o reinado da mulher é curto", e por isso seria mais prudente que ela estivesse preparada para viver por conta própria, ser independente.

A pequenina e detalhista repórter da aventura de 1949 acabou trabalhando na Organização das Nações Unidas em programas de defesa dos direitos da mulher e vive até hoje nos Estados Unidos.

O lema da vida de Francisco Brasileiro bem pode ser um trecho de um de seus livros: "Seja tudo, nesta vida única, de plena consciência, porque se aqui estou, a tudo irei à última conseqüência, para ser o dono da minha própria aventura". Só não conseguiu alcançar uma fronteira, apesar da persistência, porque não podia ser senhor do tempo: queria viver até os 100 anos, ou pelo menos chegar ao século 21.

Em 1989, como em 1943, ele queria seguir em frente, mas o Chefe não deixou. Morreu em julho, aos 82 anos. Para a festa do centenário do nascimento de Chicão, em 27 de outubro, Joana organizou um pequeno livreto com fotos das viagens e trechos das obras. A tiragem, infelizmente, é de apenas 300 exemplares, só para o deleite da família e dos chegados.