08/07/2015

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Norbert Wiener e a emergência de uma nova utopia

Phillipe Breton
Pesquisador associado ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica (Strassburgo, França). "Nobert Wiener, a cibernética e a emergência de uma nova utopia" foi publicado com o título "La formation d'une nouvelle utopie", como capítulo de L¶
CONTEXTO: RESPOSTA A UMA QUESTÃO CONTEMPORÂNEA
As teorias da comunicação surgem a partir de 1942, na virada definitiva da 2ª Guerra Mundial rumo à barbárie – Norbert Wiener, o “pai da cibernética”, insiste muito sobre o "naufrágio" que espreitava a sociedade. Há ligações subterrâneas entre o conflito (especialmente os campos de concentração e a bomba atômica), a escalada das técnicas de comunicação e a formação de uma nova utopia em torno da comunicação. A noção de comunicação, nascida no interior das fronteiras estruturais do mundo científico, e que aí poderia ter ficado circunscrita, não toma toda sua força moderna, toda sua carga utópica, do fato de convergir com um contexto histórico particular?
 
PROJETO UTÓPICO AMBICIOSO
A obra-chave de Norbert Wiener, The Human Use of human beings, se inscreve muito bem na longa tradição de obras utópicas. Phillipe Breton escreve sobre o ambicioso projeto que se articula em torno da comunicação e propõe uma outra definição antropológica do homem: o Homo communicans. Não é o corpo biológico que funda sua existência social mas, antes, sua natureza informacional . “Todos os seres comunicantes possuem um estatuto antropológico comparável, desde que estejam todos no mesmo nível de complexidade. A nova ‘humanidade’ diz respeito pois a todos os homens mas pode se estender, também, a todos os seres candidatos ao estatuto de ‘parceiro comunicativo’ integral.” O pensamento é uma qualidade que não pertence ao homem propriamente dito porque é transferível para fora da pessoa. As leis do pensamento são gerais, independentes de seu contexto humano de produção. “A revalorização do pensamento é um projeto inteiramente explicitado na vontade de construir máquinas de inteligência artificial por intermédio do computador que fossem capazes de, em performance, ultrapassar o espírito (mind) humano.”
 
Os processos mentais derivam do raciocínio entendido como cálculo; são concretizados na claridade e transparência, ao menos na medida em que isso é possível. A inteligência, nessa perspectiva, não é uma qualidade do sujeito individual mas a capacidade de desenvolver a comunicação em um certo nível de complexidade. Como muitos cientistas, Wiener, seguindo Turing e von Neumann, está persuadido de que o pensamento, como ação comunicativa, é um cálculo e que as modalidades de efetivação desse cálculo são , por um lado, independentes de apoios biológicos e, de outro, transferíveis a outros "dispositivos" ou "suportes", sejam naturais ou artificiais.
 
TRANSPARÊNCIA
A arquitetua do vínculo social wieneriana deverá privilegiar, como jamais sem dúvida se fizera até então, a "transparência", palavra-mestra para entender os fundamentos da sociedade moderna, grande casa de vidro, onde todos deverão saber de tudo, ao menos idealmente.
 
A nova utopia fornece uma metáfora alternativa ao "homem dirigido desde o interior": "O homem novo", o homem moderno, é, antes de tudo, um "ser comunicativo". Seu interior é totalmente exterior. As mensagens que ele recebe não lhe chegam desde uma interioridade mítica mas, ao contrário, de seu "ambiente".
 
O Homo communicans é um ser sem interior e sem corpo, que vive em uma sociedade sem segredo; um ser totalmente voltado para o social, que só existe através da troca e da informação, em uma sociedade tornada transparente graças às novas "máquinas de comunicação".
 
Não há mais um nível onde agiria o indivíduo e um nível que seria o da sociedade: um e outro se encontram fundidos em um laço social moderno unitário. É a transparência que permite essa fusão: graças à comunicação, o homem é transparente à sociedade, e a sociedade é transparente ao homem.
 
UTOPIA SEM INIMIGO
Paralelamente ao novo conceito de humanidade, nascerá o tema de uma nova sociedade onde, como dizia Wiener, "a comunicação deve ter a extensão que merece: a de fenômeno central". Trata-se de uma nova visão do político que irá constituir a base de uma verdadeira alternativa às ideologias políticas tradicionais, na medida em que é uma utopia sem inimigo. Esse ponto é essencial e explica parcialmente seu sucesso. Pela primeira vez desde que o princípio da utopia se pôs a agir, imagina-se uma sociedade nova cuja construção não requer uma purificação prévia, porque seu princípio de funcionamento não são o antagonismo e o conflito mas a comunicação e o consenso racional. Provém do simples fato de comunicar o mais ativamente possível a liberação da sociedade pelo menos da ameaça de sucumbir de maneira imediata em um vasto naufrágio entrópico.
 
Essa sociedade carece de inimigo humano mas isso não significa que não se oponha, para sobreviver, a fatores ameaçadores. Essa utopia, malgrado tudo, continua sendo uma utopia combatente, ainda que suas forças não sejam dirigidas contra certos homens, que ela excluiria para assegurar o progresso. Seu único inimigo não é humano: é o "ruído", a entropia, inimigo que tem influência, que ameaça até mesmo dominar o mundo e que somente a "livre circulação de informações" poderá conter. Pode-se entender como à saída de um longo período de confrontos mortíferos, que puseram em jogo ideologias cujo destino é promover a exclusão, uma tal utopia pudese dispor a priori de um certo capital de simpatia e pudesse ter alguma ressonância na opinião esclarecida.
 
ANARQUISMO RACIONAL
Qual é de fato o modo de gestão política de uma tal sociedade? O programa wieneriano comporta três grandes imperativos: primeiramente, a necessidade absoluta de o homem ser reconhecido como ser comunicativo e de que suas faculdades sejam utilizadas nesse sentido; em seguida, que as máquinas tenham socialmente o estatuto que elas merecem e que se transfira a elas as responsabilidades pelos processos de comando e de decisão; enfim, que a sociedade se auto-regule, graças à retroação e ao caráter aberto das vias de comunicação.
 
Esse programa político que faz da comunicação o valor central lembra de maneira muito forte as teses anarquistas, pois desenha os planos de uma sociedade sem Estado e de onde o poder como modo de exercício do governo foi banido. Mas esse anarquismo tem uma forte conotação racional, porque as decisões, em tal sociedade, são tomadas racionalmente e, de preferência, por máquinas.
 
Wiener critica assim os modos de organização territorial que privilegiam os conjuntos muito amplos, sustentando ao contrário a ideia segundo a qual as pequenas comunidades de vida possuem as capacidades reguladoras mais importantes. As premissas do small is beautifull, o slogan dos anos setenta, estão intimamente ligadas ao pensamento político de Wiener.
 
A comunicação se nutre de uma certa herança anarquista – podendo-se compreender melhor porque, nessa perspectiva, a utopia da comunicação irá inspirar tão amplamente as atuais teorias da autogestão. Todavia ela se distingue pelo tipo de regulação proposta, ao se articular em torno do progresso técnico e de uma nova relação com as máquinas mas, também, em torno de uma outra definição do homem e do vínculo social.