Mergulhados que estamos há alguns anos em um pântano de cortes e ataques à ciência e às universidades, o final de julho e início de agosto de 2021 causou particular apreensão coletiva e simultânea. Às vésperas do último fim de semana de julho a famosa Plataforma Lattes do CNPq caiu, ficando fora do ar (e das fibras óticas) por quase duas semanas e, assim, perdemos todos os nossos currículos. Muitas manifestações nas redes sociais ultrapassaram os umbrais do desespero, afinal muitos (ou quase todos) nesse país, que militam pelo conhecimento nas universidades e institutos de pesquisa, têm apenas o tal Lattes como currículo. Pelo menos é o meu caso e, em vez de me desesperar, comecei a imaginar como seria a vida sem currículo. Antes, porém, desse exercício de ficção científica, um pouco da história dessa instituição chamada currículo Lattes, que surgiu no final de 1999.
Antes disso, os currículos eram datilografados (e depois digitados, fazendo uso dos editores de texto precursores do onipresente Word em quase todas as áreas do conhecimento ou do Latex, em alguns setores de resistência à Microsoft). Os modelos para jovens estudantes e pesquisadores eram os currículos de seus professores, assim havia pluralidade, variações caso a caso. Com o advento do Lattes, os currículos sofreram um lento processo de isomorfismo organizacional, ou seja, todos passaram a ser semelhantes, o modelo estava dado, o mesmo “template” colocado para todos. O isomorfismo organizacional se alcança através de três mecanismos, todos presentes na história desse currículo. O primeiro mecanismo é a coerção, todos éramos (e somos) obrigados a ter o nosso. Um outro mecanismo é o normativo e, de fato, o currículo Lattes passou a ser a norma no ambiente acadêmico brasileiro e, por fim, foi importado por outros países, o terceiro mecanismo, o mimetismo.
A importância dessa instituição chamada currículo Lattes e a sua atual encruzilhada devido aos cortes financeiros, necessários para o seu contínuo desenvolvimento nessa época de “plataformização da ciência”, é descrita por Tulio Chiarini e Victo Silva em artigo recente, posterior ao “apagão” dos nossos dados [i]. Além disso, a plataforma Lattes, nessa tendência de plataformização, passou a sofrer a concorrência de outros instrumentos internacionais como o ResearchGate, a ORCID ou o mesmo o Google Acadêmico. Ou seja, Chiarini e Silva descrevem as brechas ao nosso “aprisionamento tecnológico” a um modelo, cuja indisponibilidade por quase duas semanas causou tanta apreensão.
Particularmente, eu aprecio o Lattes a partir de uma perspectiva: a mineração de seus dados deu (e dá) origem a importantes trabalhos de estudos quantitativos sobre a ciência no Brasil. Vejam, por exemplo a história do ScriptLattes de Jesús Mena-Chalco [ii]. No entanto, como eu mencionei acima, minha preocupação é com outro aprisionamento: ao currículo em si, que eu jamais reconstruiria se o “meu Lattes” fosse perdido para sempre.
O currículo tem vários precursores históricos, talvez o mais famoso seja o “résume” de Leonardo da Vinci, que ilustra essa coluna: foi escrito em 1482, descrevendo suas habilidades ao duque de Milão, a quem pleiteava trabalho. No entanto, disseminou-se como documento necessário para conseguir um emprego no início do século passado: currículos eram enviados em resposta aos anúncios de emprego, que começaram a ser publicados nos jornais. Mas é no mundo acadêmico que esse “documento confessional”, segundo o sociólogo Andrew Metcalfe, conquistou um lugar especial. Em seu artigo de 1992 [iii] , uma passagem na introdução é especialmente saborosa.
“Os currículos são um assunto apropriado para a atenção acadêmica, pois a academia moderna é morbidamente obcecada por eles, e é provável que se torne mais obcecada com a institucionalização de esquemas de avaliação baseados em performance na universidade moderna [...] Na privacidade de suas telas de computador, acadêmicos sombriamente consideram seus próprios currículos. Devem enfatizar seus feitos de ensino tanto quanto os de pesquisa? Um artigo longo vale tanto quanto vários curtos? Quantos produtos (artigos, etc) podem ser espremidos de um único projeto? Vale a pena escrever resenhas se elas não se qualificam para o currículo? Existem lacunas que necessitam de uma justificativa especial?
A despeito dessa mórbida obsessão, o currículo não recebeu muita atenção sociológica...”
Pelo menos uma dessas perguntas o currículo Lattes respondeu, pois novos campos foram sendo acrescidos e lá cabem as resenhas mencionadas pelo sociólogo australiano, que assevera que o “currículo tornou-se um dos grandes textos confessionais de nossa época”.
Nesse sentido sociológico parece que a atenção ainda era pouca 25 anos depois, ao menos segundo Eva Forsberg em sua palestra “Curriculum Vitae – o curso da vida” [iv]. A palestrante se pergunta também sobre a falta de interesse no tema.
“Dada a centralidade do currículo no mundo do emprego, esperaríamos pesquisa extensiva sobre o assunto. Mas não é esse o caso. Conhecimento científico do caráter dos currículos, suas funções e consequências para indivíduos, organizações e negócios é relativamente limitado.”
Eva Forsberg levanta algumas outras lebres. Ela parafraseia o trecho de Metcalfe que destaquei acima (sem citá-lo, infelizmente), mas acrescenta algo sobre a função dos currículos, que se parece à dos rankings de universidades, só que para indivíduos: “currículos transformam qualidades em quantidades mensuráveis, que são usadas em situações de competição”. Ela observa também mudanças de comportamento, decorrente dessa obsessão pela quantificação:
“Mais e mais pessoas criam arquivos pessoais e profissionais, a fim de que tudo possa ser lembrado e nada esquecido. Esse conceito não parece incluir a opção de realizar um novo começo. Quando as áreas em branco do ‘template’ se tornam visíveis, e quando a autoestima dos acadêmicos é ligada a isso, as estratégias são direcionadas a preencher as lacunas. Isso nos coloca, potencialmente, em uma direção [...] em que as insuficiências nos currículos governam a prática e cultura acadêmicas.”
A cultura do currículo cria uma trajetória, um curso de vida, previsível, voltada a corrigir o passado e não olhar para o futuro. Os doze dias sem o “meu Lattes”, trouxeram um certo frescor, confesso, uma desconstrução da paráfrase do cogito cartesiano: tenho Lattes, logo existo.
Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). Foi secretário de comunicação da Unicamp.
[i] https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/277-a-plataforma-lattes-corre-o-risco-de-se-tornar-um-tecnossauro
[ii] https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/BF03194511.pdf
[iii] https://www.jstor.org/stable/23746553
[iv] https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.3402/nstep.v2.33742