11/07/2011

Aventuras na História

Olha pro céu que lá vem história - cultura e constelações

Nada compete em fascínio com a vasta amostra de mitologia grega que reina nas alturas há séculos e séculos e que a União Astronômica Internacional, fundada em 1919, não teve o atrevimento de abandonar

Eleve seus olhos para o céu à noite e, se você mora em uma grande cidade... provavelmente não verá muita coisa, graças à poluição atmosférica e ao excesso de luzes urbanas. É uma pena, não só pela beleza que se perde, mas também porque há ali muita história boa, no mínimo curiosa, perpetuada pelos nomes das constelações, os desenhos traçados com base em um punhado de estrelas, como naqueles jogos de ligar pontos.
 
Lá está pendurada desde fins do século XVII uma homenagem ao rei Sobiesky da Polônia – é a constelação de Escudo, ou Scutum Sobiescianum. Não é pouca coisa que o agrado ao monarca polonês tenha permanecido até hoje, considerando que cortaram as asinhas de franceses e ingleses, riscando do mapa celeste as constelações para honravam Napoleão e o rei George.
 
Um século depois, o astrônomo francês Nicolas Lacaille saiu batizando constelações, 14 ao todo, com as designações de aparelhos das ciências e das artes. Foi assim que ele prestou seus respeitos a itens como o forno químico, usado para destilação, e a máquina pneumática – sim, existe a constelação do Forno e a constelação da Máquina Pneumática.
 
Mas nada compete em fascínio com a vasta amostra de mitologia grega que reina nas alturas há séculos e séculos e que a União Astronômica Internacional, fundada em 1919, não teve o atrevimento de abandonar quando a Délimitation scientifique des constellations loteou o firmamento em 88 grupos, em 1930.
 
A de Aquário, por exemplo, lembra o sequestro de um jovem troiano bonitão, Ganimedes, que foi obrigado, coitado, a servir de copeiro no Olimpo. A titular da vaga era Hebe, deusa da juventude, filha de Zeus e Hera, mas ela largou o batente quando se casou com Hércules (outra versão diz que o caso foi de demissão por justa causa, porque ela tropeçou no serviço).
 
Sobrou para Ganimedes. Distraído enquanto se divertia com os amigos no Monte Ida (outra versão diz que o pobre moço estava é guardando o rebanho do pai), foi raptado por Zeus-em-forma-de-águia e levado para o emprego. Suas atribuições oficiais eram servir o néctar aos imortais, preparar o banho de Ares e ajudar Hera a atrelar seu carro divino. Mas, na verdade, Zeus estava é de olho no belo rapaz.
 
A constelação de Cabeleira de Berenice traz esse pitoresco nome do episódio em que a rainha egípcia cortou seus cachos como um tributo aos deuses quando seu marido voltou são e salvo da batalha. Trata-se aqui de um caso de promoção. A cabeleira era simplesmente parte da cauda da constelação de Leão, mas, no século XVI, o cartógrafo holandês Gerardus Mercator a descreveu como um arranjo à parte, tosando o rei da selva sem mais nem menos.
 
É de se reconhecer que não há tanto heroísmo assim na história de um processo seletivo forçado para copeiro ou em um dramático corte de madeixas para agradecer pelo retorno de um esposo incólume.
 
Mas há lendas mais emocionantes com direito a pôster celestial. A constelação de Hércules, no canto esquerdo do céu para quem está no Brasil e observa na direção norte, é lembrança dos grandes feitos do maior dos heróis, que os gregos chamavam de Héracles ou Alcides.
 
Fruto de uma das muitas puladas de cerca de Zeus com mortais, Hércules era filho de Alcmena. Evidentemente, virou alvo da raiva da deusa Hera, sempre enganada pelo marido. Mas já demonstrava não ser comum quando, aos tenros oito meses de idade, estrangulou não uma, mas duas gigantescas serpentes enviadas contra ele e seu meio-irmão Íficles. Aos 18 anos de idade o cidadão já tinha 3 metros de altura.
 
Mas a esposa de Zeus articulou então um estratagema para submetê-lo, por meio do covarde Euristeu, seu primo e rei de Micenas, aos famosos 12 trabalhos. A deusa lançou sobre ele raiva e demência, que o levaram a trucidar os próprios filhos e quase todos os sobrinhos (tudo bem que, sem feitiço nem nada, ele já tinha matado o professor de música e letras, Lino, dando-lhe com uma lira ou um tamborete na cabeça, só porque tinha sido chamado à atenção).
 
Teria de pagar pelo crime hediondo. Consultado o Oráculo de Delfos, veio a sentença: 12 anos às ordens de Euristeu, caracterizado pela lenda como um poltrão, deformado física e moralmente, tão afeito a amarelar que tinha mandado construir um enorme jarro de bronze para se esconder nos momentos de pânico.
 
Hércules teve de fazer de tudo, até mesmo limpar estrume de um imenso rebanho, acumulado por 30 anos. Matou leão de couro invulnerável, deu cabo de uma hidra, levou um monstruoso javali para Euristeu (que ficou apavorado e se meteu na superjarra), perseguiu uma corça sagrada com pés de bronze e cornos de ouro que, rapidíssima, deu uma canseira de um ano, subjugou pelos chifres o touro de Creta que soltava fogo pelas narinas, trouxe as quatro éguas antropófagas da Trácia, matou aves gigantes, teve de negociar a entrega de um cinturão da rainha amazonas Hipólita, confiscou um rebanho de bois do monstro Gerião, foi ao Hades para trazer o cão Cérbero (e Euristeu, de novo, correu para o jarro).
 
Os gregos antigos descreveram mais da metade das 88 constelações reconhecidas pela União Astronômica há 90 anos. Quarenta e oito delas foram registradas nos volumes 7 e 8 da Composição Matemática, a obra mais importante de Cláudio Ptolomeu (90 a 168 d.C.), astrônomo de Alexandria. Os volumes só foram resgatados do esquecimento graças à admiração e zelo dos árabes, que traduziram a Composição batizando-a de Almagesto, de Al Midjisti, “o mui grande livro”.
 
O trabalho de Ptolomeu é fortemente influenciado pela obra de Eudóxio de Cnido, de aproximadamente 350 a.C. A essa natural transmissão de legado entre pensadores corresponde uma verdadeira corrida de revezamento com bastão, de cultura para cultura, que marca o conhecimento astronômico que chegou até nós. Os gregos absorveram o conhecimento babilônico, mudando os nomes, é claro. Os romanos também.
 
Entre os séculos 16 e 17, astrônomos e cartógrafos celestes europeus adicionaram novas constelações às 48 consolidadas por Ptolomeu. Em sua maioria, eram descobertas feitas pelos primeiros exploradores do Hemisfério Sul. Entre quem fez contribuições particulares para a nova safra estão os astrônomos Johannes Hevelius (o que homenageou o rei da Polônia) e Nicolas de Lacaille, os cartógrafos Houtman, Keyser, Mercator e Plancius, e o navegador Américo Vespúcio.
 
Mas qual a relevância de tanta história estampada nas alturas para os ocupados terráqueos de hoje? "Talvez alguém se incomode que, em pleno século XXI, estamos falando de mitologia. Por que nomes greco-romanos? Mas tudo é histórico. Tudo é cultural. São 'causos' que marcam a cultura ocidental. Na China, por exemplo, os nomes são outros, e a miscelânea segue lógica bem distinta: 298 constelações retratam o cotidiano na corte e a vida social", explica Walmir Thomazi Cardoso, mestre em História da Ciência, doutor em Educação Matemática e professor do departamento de Física da PUC-SP.
 
O loteamento celeste que continua fazendo muito sucesso, porém, é o zodiacal. Mas "na sua origem, a astrologia não trata, como farão posteriormente os horóscopos, de traçar o destino dos indivíduos em função de sua data de nascimento", escrevem o professor de Física Arkan Simaan e a historiadora Joëlle Fontaine no livro A imagem do mundo – dos babilônios a Newton (editora Companhia das Letras). "Suas predições se referiam apenas à coletividade e ao rei que a representava." Os astrônomos da Mesopotâmia, explica a dupla, são sacerdotes, responsáveis pelo inventário das constelações do zodíaco por volta do século V a.C., o qual, depois de muito tempo, assumiu a forma atual: doze signos de 30 graus cada um, servindo de referência para medir a progressão do Sol sobre o pano de fundo das estrelas ao longo do ano, a partir do observador na Terra em movimento.
 
As descobertas arqueológicas deixam claro que a função desses sacerdotes-astrônomos era como que atuar como informantes do rei, advertindo-o dos tempos escabrosos por vir. Havia espécies de "manuais" para astrólogos que vinculavam fenômenos celestes a desgraças humanas – eclipses eram vistos como ocorrências especialmente funestas.
 
Claro que o pensamento científico repudia tal devoção persistente ao horóscopo – sem muita influência sobre o grande público, convenhamos. Uma das broncas mais básicas é que, por causa de um movimento específico da Terra chamado precessão, o eixo dos polos não aponta sempre para uma mesma estrela. Hoje o eixo mira a estrela polar, Polaris, mas na época dos egípcios a estrela "polar" era Thuban ­– e daqui a 12 mil a 13 mil anos será Vega. "As previsões astrológicas deixam de levar em conta a precessão. A nomenclatura atual das constelações do zodíaco foi codificada há 2 mil anos. Consequentemente, os signos devem seus nomes às constelações com as quais coincidiam... vinte séculos atrás!", reclamam Simaan e Joëlle.
 
Ainda assim, ai de quem ousar mexer no horóscopo. Parke Kunkle, da Sociedade Planetária de Minnesota, apareceu no início deste ano falando em precessão, que os signos astrológicos não correspondem ao lugar real das coisas na abóbada celeste... E ainda por cima atreveu-se a afirmar que deveria haver novo signo (Ofiúco, ou Serpentário). Kunkle foi alvo de irritação planetária e piadas indignadas. Chegou a confessar que estava impressionado com a repercussão.
 
Mas há também físicos e historiadores mais tolerantes com o fascínio humano pelos mistérios celestes. "O arranjo que acabou por se consolidar presta uma homenagem às origens históricas da astronomia que, afinal, datam da Antiguidade. Já na Babilônia, há mais de 3 mil anos, as pessoas olhavam para os céus se questionando sobre as estrelas e seu significado. Lá nasceu a astrologia, que continua popular até nossos dias. Numa época em que os céus eram sagrados, era razoável interpretar as posições das estrelas como tendo um significado religioso, como se fossem parte de uma escrita divina", pondera Marcelo Gleiser, professor de Física e Astronomia do Dartmouth College (EUA) e autor dos livros A dança do Universo e Criação imperfeita, entre outros.
 
"Hoje a imensa maioria das pessoas vive em cidades e o céu não é aquela presença marcante, como era até a invenção da iluminação elétrica, portanto, como era até o fim do século XIX. A iluminação da terra ofuscou a do céu. Por outro lado, a alma humana continua a buscar pelo fascínio do céu, na forma do horóscopo, que, a despeito de todo o avanço tecnológico, continua a fascinar o ser humano. Portanto, se o brilho objetivo das estrelas diminuniu, sua fascinação subjetiva não deixou de existir", diz Pedro Paulo Funari, doutor em Arqueologia pela USP e professor titular de História da Unicamp.
 
Seja por falta de hábito, seja por culpa da poluição e do excesso de luzes das grandes cidades que tornam o céu noturno um deserto com raros oásis brilhantes, o fato é que hoje se ignora uma rica história cultural contada logo acima de nossas cabeças. Com um simples binóculo e um livro sobre mitologia, você pode começar a resgatar tudo isso em qualquer noite dessas. "Mesmo que nossa conexão com o céu não seja mais a mesma, continuamos olhando para as estrelas com o mesmo senso de maravilhamento", diz Gleiser.