27/04/2002

Tragédia aristotélica bane happy end e põe todo mundo na linha

 

Augusto Boal, nos textos iniciais de Teatro do oprimido (1974 d.C.), desenvolve a tese pela qual o teatro de Aristóteles (384-322 a.C.) é um sistema poético-político de repressão das tendências do público espectador que se mostrem contrárias à ordem vigente.

 

Boal reconhece que esse sistema “pode ser utilizado por qualquer sociedade sempre e quando possua um ethos social definido. Para o seu funcionamento, tecnicamente não importa que a sociedade seja feudal, capitalista ou socialista. Importa que tenha um universo de valores definidos e aceitos”.

 

Boal destrincha a definição aristotélica de arte. Através do recurso à tradução mais apurada da célebre declaração: “a arte imita a natureza”, é descartada a noção de que a arte é uma cópia ou reprodução das coisas criadas. Na verdade, Aristóteles quis dizer que a arte recria (mimesis) o princípio criador das coisas criadas.

 

Para explicar melhor o que significa essa tradução aprimorada, Boal traça um histórico do pensamento sobre movimento e essência da natureza, recorrendo brevemente ao time Tales, Anaximandro e Anaxímenes; Heráclito e Crátilo; Parmênides e Zenão; Sócrates e Platão; até retornar a Aristóteles, para quem a realidade não é a cópia platônica das idéias, mas a “plataforma” que carrega em si a tendência à perfeição ideal. Assim, não haveria a divisão platônica em dois mundos (metaxis), já que o mundo da perfeição não é nada mais que um anelo, cujo alcance não é automático, não é garantido, pode malograr.

 

Quando Aristóteles fala em arte recriando o princípio criador, quer dizer arte dando um novo impulso a esse movimento intrínseco de tudo em direção ao Perfeito – quando fraqueja e falha. Eis aqui a Arte assumindo o papel de zeladora do que deveria ser (papel cumprido na catarse).

 

Através de sucessivas construções conceituais, em certos momentos bastante divertidas (sobre Édipo: “Caramba: uma pessoa a quem os oráculos – espécie de macumbeiros ou videntes da época – haviam dito que ia se casar com sua própria mãe e matar seu próprio pai deveria ter um pouco mais de cuidado e abster-se de matar velhos com idade de ser seu pai, e casar-se com velhas com idade de ser sua mãe”), Boal alcança a definição aristotélica da Tragédia:

 

A Tragédia imita (mimesis) as ações (ethos) da alma racional (dianóia) do homem, suas paixões tornadas hábitos (não servem as faculdades nem as paixões acidentais), em busca da felicidade (não serve a felicidade dos prazeres nem da glória), que consiste no comportamento virtuoso (que dispensa o reconhecimento glorioso e deve ser voluntário, livre, consciente e constante), que é aquele que se afasta dos extremos, cujo bem supremo é a Justiça (não a igualdade, mas a proporcionalidade da desigualdade tal como dada pela realidade concreta [é aqui que a coisa pega]), cuja expressão máxima é a Constituição (escrita pelos seres superiores, a saber, os homens livres, ou os ricos).

 

A tragédia aplaca os focos de desobediência à “Lei” – revolta contra as desigualdades legalmente cristalizadas pelos donos do poder – através do mecanismo da catarse. Vinculando o espectador pela empatia, cujo binômio constitutivo básico, não exclusivo, é a piedade (pelo destino não merecido do herói trágico) e o terror (o destino cai sobre alguém que se parece com o espectador), a Tragédia promove uma correção, uma purgação, exatamente aquele trabalho de zeladoria ou garantia do sucesso do movimento em direção à perfeição. Uma descarga é acionada na Tragédia para expulsar instintos não sociáveis, elementos inquietantes, “carências políticas”.

 

A apresentação inicial desse erro (falha trágica ou harmatia, uma única nódoa numa vida toda virtuosa, pelo esquema aristotélico clássico) é feita com compreensão, como aceitável. O herói começa no mais alto de sua glória justamente por causa dele. Esse desenvolvimento trágico aumenta a eficácia da correção, à medida que “prende” o espectador no início, pelo estímulo da harmatia, depois modifica radicalmente o destino do personagem (peripécia), faz o herói trágico reconhecer sua harmatia (anagnorisis) e finalmente lhe destina uma terrível bordoada (tragédia). Aterrorizado, o espectador se purifica do erro. É a catarse, o empurrão do teatro para que a natureza siga seu rumo em direção ao “perfeito”.